terça-feira, 8 de maio de 2012

Meu errante Lampião!

1° parte

 Sonho Agourento


Lam-pi-ão....este nome esta encravado na pedra mais bruta do nosso Sertão.. Esta terra prenhe de solidão, lentidão e contrição, ontem mesmo assombrou meus sonhos com suas agruras, transformando o que era úmido em poeira e castigando minhas poucas horas de sombra com estórias iluminadas de meio dia. Não se iluda com a palavra ‘iluminada’, pois é na hora do sol a pino que o diabo se solta no de-sertão. Num rompante, fui tragada pelas profundezas, e do nada, e em desespero me vi no Nada. Por todos os lados e avessos, só via a grossa terra chorando por água, digo, clamando, pois nem lágrima tinha por falta da matéria prima.

Meus olhos doíam de claridade. O possesso sol chicoteava todo meu vértice com suas lâminas incandescentes, que perpassavam minha fina pele em direção certa e ligeira às minhas veias ainda molhadas. Estas, coitadas..se enrijeceram, talvez por medo do calor abrasivo, que sussurrante passava roubando qualquer resquício de líquido estranho a essa terra seca e talhada.
Sentia dificuldade até pra respirar, pois que me chamem de louca, mas mesmo o ar era diabolicamente seco, como se em vez de oxigênio eu puxasse poeira quente sobre dois. Minha situação era uma variante tragédia, mas graças a uma lembrança sorrateira vinda de algum pavilhão do meu inconsciente, recordei-me que a pouco estava eu deitada em minha bagunçada cama folheando um livro amarelado de Virgolino Ferreira da Silva, o espinho errante do Sertão! Ah doce lembrança!..Isso foi como delicioso balde de água fria enxaguando minha alma já suarenta. Só podia eu estar sonhando certamente..mas que diacho de pesadelo foi esse em que me meti! E rogo em dizer, que por em engano viu senhor..pois rezei agorinha mesmo antes de me entregar aos braços deliciosos de Morfeu.

Por que fui cair justamente neste limbo, que não é sonho nem realidade, céu nem inferno, mas somente um oco vazio das entranhas secas deste velho Sertão? Tentei olhar para o alto para ver se encontrava dois olhos fechados lá rumo às grades do sonho, mas não conseguia devido às labaredas do sol! Gritei rezando pra sonsa acordar, mas só o eco das minhas lamúrias ficaram a me aporrinhar. Droga! O que farei agora!? Sento, espero e morro de sede pra ver se a danada acorda simplesmente para ir buscar um inocente copo d’agua na cozinha, esta, tão infinitamente próxima e distante do lugar tenebroso em que me encontro ou caminho em perseguição desvairada à minha sombra para ver se encontro algum personagem que engrandeça este sonho só rico de miséria.
Mas antes que eu desse o primeiro passo incerto, vi no horizonte fumegante, o que parecia ser um rabisco de um homem vindo em minha direção. Estanquei, quem será o rebento, filho desta terra perdida?! O que mais li naquele folhetim de banca para alucinar desse jeito e o que esperar deste sonho mandingueiro! Deus meu se tu és grande adentre meus pensamentos e me tire desta intersecção..mas e se meu espirito estiver fora do corpo, sendo bem cuidado em algum do plano superior?! Dai garota só restará a ti implorar para que o tempo aqui não escorra como seus demais sonhos, pois a ampulheta de Morfeu, geralmente lhe oferece uma vida inteira a cada noite.

Agoniada tentei afastar tais pensamentos focando as vistas já machucadas pelo clarão na figura insólita que se formava ao longe. Com o coração aos tropeços obriguei meu corpo a caminhar em direção ao homem. Cada passo era uma cruz pesada, pois o abrasivo calor tostava minha pele como se o sol fosse uma pequena janela a dar no inferno.

Vi aves de rapina flutuando no bafo quente do céu ou seriam urubus já farejando no ar uma carniça nova pra degustar? Do jeito que meu inconsciente adora pregar peças..mais fácil serem malditos urubus mesmo. Se eu morrer aqui espero que ao menos me lembrar dessa odisséia amarga a tempo de contar tal desvario a minha mãe..só ela mesmo para acreditar em tamanha desmiolagem!

(E o primeiro grão da ampulheta cai..)

2° parte

Encontro com o velho sertanejo


Um velho arranhado de sol, de passo lento e supersticioso, aproximou-se de mim. Parecia ele vir de amplíssimas lonjuras, não que resfolegasse, mas suas roupas encardidas pelo tempo casavam com a triste cor batida daquele horizonte sem fim... Seus pés maltratados pelo destino pareciam dormentes de tanto amassar pedra e poeira.. Digo que feridos não estavam, pois a grossa crosta do solado há muito haviam escolhido viver em comunhão com a velha terra.

Seu rosto juncado de atalhos guardava um olhar molhado expressivo. Essa misteriosa umidez realçava o brilho destes, não sabendo eu ao certo, se de tristeza em viver destino tão ordinário ou se de regozijo ensandecido por ludibriar a própria morte. Suas mãos retirantes levavam de um lado os calos de um passado penoso e na outra uma  garrafa velha  com um tanto  assim de água odorífica para dissipar-lhe talvez as mágoas. Ele percebeu meu ligeiro olhar acusatório e num grito só cantado e bafejante falou:

– Minina não me venha com este olhar de rabugem, pois tão cedo divides esta boa e velha cachaça comigo! Nesta terra de perrengue só persiste água quente, e esta, disse ele sacolejando a garrafa já pela metade, é da mais pura e boa estirpe! Levantou-a em direção ao céu, continuou com a propaganda manguaceira:

- É ela que alivia espíritos perdidos, e que chamejante desce umedecendo a glote, matando o que há de micróbio ruim. A cachaça é nossa melhor amante, nada requer apenas promove um doce gozo em nosso cérebro! Ah grande cachaça! Você veio para quebrar a apatia dos tempos! Chega mesmo a ser tudo, inclusive..

Nisso, fez uma ligeira pirueta, e em descompasso com a idade saltou em minha direção! Cheia de espanto tropecei assustada, mas vi que logo em seguida que o bandido de pé cru pisava era numa peçonhenta vinda dos vincos mais profundos do inferno!

“-Incluse remédio para mordedura de cobra!!”, disse ele pegando a chacoalhenta cascavel pela cabeça como se brinquedo fosse.

A bicha que se agitava toda foi forçada a abrir a guela devido à pressão de um obtuso dedo. Nisso a diaba revelou os dentes gigantos, que por pouco não abriram dois inocentes dutos para extravasar em mim o elixir da morte.

Meu velho e louco salvador em vez de matar a maldita num só golpe, mostrava em rixa, seus poucos dentes pra jaconda. Esta ensandecida soltava chipas com a sua rasgada língua. De suas entranhas macumbentas saiam um chiado terrivelmente enferrujado. O doido, em seu compasso de terreiro, como um dervixe fora do eixo rodava a cobra como corda.

A transe desvairada dele de forma inexplicável começou a deixar meu corpo um todo arrepiado. Uma música vinda não se sabe da onde, com um ritmo inenarrável, desviava meu coração de sua função e rotina. Em cadência ele tocava, uma nota impactante, participe daquela cigana orquestra! Horrorizada sentia meu espírito em reboliço, como se este quisesse forçar meu pobre corpo a rodar feito uma louca alucinada!

Tentava segurar meus pés e pensamentos, mas olhava hipnotizada para cena que se passava.. Digo que só não me entreguei à dança eloqüente, pois um rastro de auto deboche resgatou minha cansada sanidade. “Só posso estar louca! Estou encarcerada dentro do meu sonho, afundada a tal ponto, que minha própria pseudo-alma deseja ter mais vida própria do que eu, que sou apenas mais uma joguete desta paródia noturna!..", gritava eu comigo mesma.

Num ritmo ritmado vi o velho - que já não era tão velho assim -, por a garrafa na boca e cuspir logo em seguida uma rolha babada e porosa. E jogando por terra algum resquício de lógica, fez beijar a cobra a aguardente! Prensou seus dentes afiados no vidro com tanta força, que o veneno saiu num esguicho para a se misturar aquela bebida, que se já era impura, se tornou mortífera.

Feito isso, puxou da cintura um cintilante punhal de dois palmos e pausando toda trova, cortou ao meio a comparsa da medusa. Desnorteada vi na contraluz o velho fazer uma reza forte e depois se danar a beber a virulenta cachaça. Não sei era a forte luz que me deixava só com os contrastes, mas tive a nítida impressão de ver o velho espichar e engrandecer na medida em que tomava aquele líquido agourento. Olhou um tanto desfocado pra mim e disse já em si:

- Aguardente beijada por cobra raivosa, te fecha o corpo, te livra das balas e ainda afasta alma penada!

Não sabia o que dizer diante de tal cena incongruente. Levantei-me silenciosa, afastei o véu da alma, fechei os olhos para adentrar na única sombra ali presente, e com fé rezei para voltar a minha cama e à realidade. Mas de nada adiantou, bem  ali na minha frente, continuava o  velho que já pedia um nome.

- Eita minina tomare que esta prece seja ao menos reza mariana, pois de oração egoísta e interesseira, Deus já ta cheio!

- Senhor, perdoe a grosseria do meu silêncio, mas as palavras me escapam devido a angustia que passo. Simplesmente digo que não sou desta terra, vim de longe e não sei o que fazer para acordar..

- Eita cachaça da boa hem ou então a minina estrangeira tá mais perdida que bala em tiroteio de cego. Mas pior que te entendo, pois o mesmo procedia comigo diacho! Estava a caminhar a mais de ano, sem saber o que buscar. Mas agora que te encontro sinto que acordo enfim deste sonambulismo nômade, para lhe contar um causo somente, de extrema importância..

- E o que seria meu senhor? Disse eu desconfiada.
- Ora...por agora agorinha não me recordo sabe.., - disse ele ressabiado - mas não se apoquente viu, isso agente se alembra no caminho!

Pelo visto o absurdo vai reinar nessa viagem – pensava alto já olhando ao longe. – Mas me diga uma coisa, onde nós estamos?

- Ora tamos a um caminhar bão de Vila Bela!
- Vila Bela?! A cidade de Lampião?!! – "Só podia mesmo ser essa.."

- Cidade de Lampião!? Ora a ele todo Sertão pertence, aliás, seu signo pesado já rondava há muito estas bandas mesmo antes dele nascer. Vila Bela foi simplesmente onde o motor da insatisfação encontrou uma alma ferina para se a alojar! Dito e feito, uma sofrida Maria, se casou com um bom e pobre José. E foi nesse entrelaço, que o ferro do destino deste povo sertanejo escolheu o momento histórico para se vingar! Dessa união quase bíblica, sairão vários rebentos, mas um deles virá com um balaço quente no coração!

(E a ampulheta voltou a chorar..)

3° parte
                                      Lá vem vindo Virgolino!



Portinari - Retirantes

Lá fora, entre dois mandacarus tortos um magro jumento relinchou. O bafo sonolento da noite que pregava um silêncio de mil silêncios na triste terra adormecida estranhou a inquietude do animal. Parecendo sentir que algo penoso acontecia dentro da pequena casa mal pintada, granjeada por cercas atravessadas, o quadrupede bom sofredor, chamava para si a dor que untava os leves gemidos vindos de uma janela cerrada..

Uma coruja vinda dos confins de um céu belo e iluminado demais para se amancebar a fealdade da região seca e amarronzada, deu um rasante desafiante no ar e abraçou com suas garras amoladas o sopé da porteira cupinzenta, que agora rangia em lamurioso lamento. Com seus grandes olhos neuróticos, a noturna contorceu seu maleável e macio pescoço em direção ao primeiro grito abafado da prostrada Maria, que neste momento torcia lá dentro, as bordas de um lençol bege suado.

Suas mãos crispadas de dor apertavam o pano batido que a muito já soltara as amarras que lhe prendiam ao velho colchão. O ar quente que toma o quarto casamenteiro tem um cheiro forte de sangue e almíscar. As faces da enluarada Maria estão molhadas de suor, a ponto de ensopar seu cabelo displicentemente preso por um lenço vermelho cigano.

A cama feita pelo bom José parece agora pequena frente ao barrigão convexo que ocupa toda cena, e este estremece em sofrida contração mais vez que ou outra. Uma parteira de cabelos prateados entra no quarto, meio coxa, ela traz lentamente panos limpos e uma tigela mal areada com água morna. A senhora deixa os trapos num tripé perto da cama, e com mãos de vó ocupada, aperta o ventre agudo enquanto a outra levanta os panos da pequena saia rendada de Maria. Esta, ainda que de pernas abertas e dadas, mostrando a infinita essência do bem e do mal, emana de si uma áurea inocente e beata. Uma contração de tremer o mundo prepara a ferida naturalmente aberta para receber o pequeno rebento, que em agonia insiste em sair das protegidas e quentes entranhas da mãe. Maria desesperada geme, chora e clama por nossa senhora! A velha pede força e pressiona ainda mais o vale estufado.

Num rompante, dois gritos em comunhão gritam se reconhecendo em mútuo sofrimento e amor. O bebê sem nome escorre languidamente pela intersecção do mundo, e errante cai como labareda no miserento sertão. A mãe, esvaziada de sentido, se deixa cair na cama em uma paz sonolenta.

José, que encostado à porta esperava um silêncio apaziguado, entra no quarto todo amuado, vendo o suspiro cansado da esposa sente na alma um alívio incontido. Pega então nos braços a criança encasulada pelos alvos panos, e passa os dedos na testa úmida do filho, e com uma fé nordestina benze este pequeno broto, que se hoje em seus braços dorme como um cordeiro manso, amanhã trará o mundo em rebuliço.

- Sonhei ainda agora, que um anjo saído de um bravo relâmpago chegava a nossa porta, e encravava uma espada velha bem na entrada da nossa humilde casa. E depois olhou para mim, com olhos de puro raios, e num brado sem movimento de lábios disse – Ore por esta criança pois com ela vem o sofrimento de muitos. O menino que há de nascer antes do sol raiar será uma pausa no tempo e cortará a ferro seu destino. – E sem mais nem menos, me deixando só com os tremores sumiu derrepente..´

Maria ao ouvir estas palavras do marido, ergueu-se com esforço um pouco mais na cama, e com os braços falantes, chamou a sua pequena chama. José cuidadosamente entregou o pequeno de volta ao corpo quente da mãe. Ao ver aquele ser inocente, tão pequenino e já cheio de profecias a amarfanhar seu destino, a mãe diferente do pai que desarmava os filhos, não sentiu nenhum sinal de medo, pois há muito havia misturado seu sangue com o sangue ferino do menino, e sem perceber ou entender tinha agora um clamor estranho no peito..

- Se teu anjo disse que ele será uma vírgula no tempo, que esta seja uma pausa no sofrimento do nosso povo, que seja uma pausa contra essa canalha justiça que ressoa tanto por essas bandas. Nosso filho há de se chamar Virgolino Ferreira da Silva, e daremos todo amor e alento para abrandar seu espírito, mas como mãe jamais o julgarei caso ele lute contra o dragão da riqueza mesquinha. Hei de orar todos os dias, para que ele tenha uma armadura por corpo e uma alma boa. Deixe-me dar de mamar agora..


- Senhor senhor, como podes contar tudo isto, se não estava presente no nascimento dele? - Cortei tristemente o relato do velho contador.

- Eita minina avexada, estória boa não se atrapalha! Mas para tirar essa sobrancelha desconfiada da cara, digo que a bondosa parteira era minha vó, vózinha Francenilda me trouxe ao mundo também, uma pena que o cruzamento do destino só tenha nos encontrado nas dobras das mãos de minha vó. Venha agora continuemos a caminhar, pois senão o sol nos come antes de chegarmos ao meu pequeno oásis..

- Não sei como o senhor consegue contar isso tudo com a garganta tão seca! A sede só falta me estrangular, falta muito chão para alcançarmos este grotão? Daqui só vejo esse maldito descampado desidratado!, disse eu um tanto embrutecida.

- Calma menina venha para minha sombra para se refrescar, e de secura já basta essa terra desolada, não precisamos nos ressecar com palavras feias! Venha que eu devo continuar a história..

- Hunf, aiai não sei o que pensar de ti velho, ora é doido e agora ressentido com minhas palavras, como se cavalheiro fosse! Diga-me uma coisa, antes que eu precise cortá-lo novamente, qual é seu nome senhor?

- Arre me chame de velho Silva, agora vamos simbora que eu não mereço ser personagem de qualquer história que se preze. Voltemos as virgulas a ao meu amigo Virgolino..

4° parte 

No regaço do destino

Nesta terra seca e talhada nem peito de mãe carinhosa dá muito leite. Barriga para não passar fome tem que ter boca insistente e gosto de nada exigente. Virgulino aprendeu isso desde cedo. Rápido e com vontade o menino sugava os seios murchos da mãe, e com tanta energia chupava e lambia este veio, que das tetas tristes, na ânsia amada dos dois, que nesta hora santa formavam uma só, lá do fundo dos dutos da vida, um coração molhado de amor umedeceu as poeirentas glândulas de Maria com um líquido esbranquiçado e moroso. Se não era rico em proteína, pouco importava, o colostro vinha forte e caia quente, denso, carregado de carinho naquela boquinha sedenta.


Muitos diriam futuramente que Virgulino veio ao mundo com sede de justiça, mas seria pedir demais que aquele rascunho de gente batalhasse por algo mais que não fosse leite. Assim, se contentava a puxar ferozmente o caldo estranhamente grosso do âmago materno. Gota alguma escorria para fora dos lábios pequeninos daquele menino, pois este parecia sentir o quão precioso o líquido era para abrandar a tosse ranhenta do grande e velho Sertão.


O rebento assim gozava nos braços da mãe e a mãe chorava em crua felicidade ao ver a esperança jorrar em forma de alimento no corpo já quase saciado e cansado do pequeno guerreiro. Depois de mamar com tamanho fervor, emboletado dormia no regaço protegido da mãe. Maria, mãe de muitas promessas, velava preocupada o sono inquieto do filho, pois este desde cedo parecia dormir já ansiando acordar..


E assim o minino Virgulino foi espichando, crescia rodeado pelas rezas marianas e crendices da vó, pelo exemplo virtuoso do pai trabalhador, na alegria arteira dos irmãos, e sob o olhar atento e carinhoso da mãe por quem era encantado. Se a labareda do destino errante estava em suas entranhas, nessa idade primaveril a sina ficou acabrunhada a espera do infeliz sinal.


Virgulino como qualquer muleque do sertão era sabido ou distraído quando bem quisesse. O minino não via feiura em nada, por mais seca e difícil que fosse a terra sertaneja, lá tá ele passando correndo sem chinela, levantando poeira e gritando feliz por seus comparsas, “Xicão!! Bora danar as vacas do sr. Antonio e roubar uns caju!”, “Juca juca..tua irmã mais nova, Lindalvinha..a de casar comigo um dia!”, “Tião! Tenho medo docê não, sai toca diacho pra eu te dar uma sova!”


Todo coração de menino traz em si um Lampião corajoso e manhoso. E assim, benzidos por Padim Cícero, os rebentos confessavam os pecados só pra pecar muito mais. Estiligavam os passarinhos mais bunitos, puxavam o rabo dos cachorros mais ranhentos, levatavam a saia rodada da morena ardilosa com vareta só pra vê-la furiosa em toda sua beleza, nadavam pelados no riacho de Vila Bela, chupavam escondidos as mangas vermelhas dos fazendeiros ricos, dizendo que estas tinham um sabor mais doce do que as velhas mangueiras que tinham pertim de casa,  jogavam bola com bola de pano, faziam peão dançar na poeira, fugiam de casa a noitinha para contar estrelas e ouvir estórias proibidas dos homens do cangaço contra o volantes e suas ciladas, e no fim da aventura do dia, dormiam um sono bom, daqueles raros, com direito a beijo de mãe na testa, leite molhado nos lábios e sonhos entrelaçados..


- Água senhor Silva! Vejo um rio a correr lá na frente ou já estou a ver miragens? Não pode ser ilusão até escuto a água cristalina benzer esta terra de sonho ruim!


- Arre minina avexada!! Sempre a me cortar de susto antes d’eu terminar a prosa!! - falou brabo o velho.


- Me perdoe velho – disse eu já indo longe – se não estou acostumada a este clima infernal, mas preciso mais de água agora do que estória inventada sobre o menino Lampião! Deixe ele quieto dormir este sono bobo e gostoso e venha beber água fresca de verdade, sem cheiro de álcool!! – gritei feliz correndo rumo a fonte.. 


E os grãos da ampulheta velha voltam a cair..

5° parte
 
 Lampião: a ferida aberta do Sertão
 

Naquela terra queimada pelas agruras da seca pouco se escutava o murmúrio das águas. Estas pareciam escorrer silenciosas entre os veios abertos da ressecada pele sertaneja. A água de mansinho beijava a sôfrega terra, tentando talvez levar um pouco de frescor e vida a esse infeliz Sertão alimentado por tanto sol. Nem a noite escapava do bafo quente do dia, que serpenteando ia se alojar em qualquer reentrância escura para danar de suar.

Em baixo de uma árvore oca, um febril choro engasgado retorcia-se em consumida dor. A sombra encolhida pela injustiça, pouco feria o silêncio, mas as lágrimas ferventes desta caiam por terra fazendo-a tremer. O rapaz Virgolino perdera a paz de sua alma no exato instante em que sua mãe com o coração fulminantemente desiludido se rendera ao véu negro da morte. Maria, sua mãe, sofreu e padeceu como tantas outras infelizes marias, vendo seus pobres Josés serem assassinados pela ordinária e vendida milícia do Sertão. Maria desolada morreu, mas em seu último suspiro arrancou a sagrada fita que estancava a furiosa ferida do coração de seu filho mais amado.

Ali, caído na assombrada noite, Virgolino sentiu o ferro do destino lhe corroer miseravelmente as entranhas. Em labaredas a dor do povo sertanejo escorria como lava, estraçalhando seus nervos, bagos e veias. Seu coração como ovelha, parecia se desgarrar da juventude e correr em desatino em direção a velha vingança.

A ferida da alma sangrava por todo corpo, e a dor era tanta que a mente de Virgolino alucinava vendo os volantes esfaquearem o pai indefeso de cilada, sangrando via seus irmãos serem espancados e presos e para seu terror repetidas vezes via a imagem de sua mãezinha caída nos pés da cama com a mão no peito se entregando entristecida ao sombrio silêncio. Num rompante, sua lembrança foi cortada por centenas de imagens do seu povo sendo humilhado por ricos fazendeiros, viu velhos serem acoimados, açoitados e pisoteados pelos jagunços do governo, crianças arrebentadas de fome bem no cós de uma porteira mesquinha, velhas como sua vó trabalhando até a exaustão na cozinha areada do patrão, sentiu o cheiro das casas queimadas que a mando dos coronéis os capangas ateavam fogo ansiando tomar os humildes lotes de Vila Bela e tremeu irado quando em meio a névoa viu mancebas novas como sua irmã serem rasgadas e violentadas na boca de um rio choroso, só restando de inocência a branca roupa que lavaram.

Virgolino tinha agora os olhos do povo e quanto mais enxergava os horrores daquele sertão mais queria cegar-se de tamanha maldição. Virgolino chorou naquela noite todo choro abrasado do povo, cada lágrima machucada, cada sofrimento, foi um a um, sendo marcados a fogo na pele de sua alma. As estrelas do céu foram sumindo todas, as corujas pararam de voar e até o solitário riacho evitava sussurrar. Só o vento murcho de tristeza parou sem força atrás de uma velha pedra para em comunhão com o desolado Virgolino chorar.

O onipotente sol já começava a raiar quando a última marca perfurou seu já destroçado coração. Este, incandescente de ira, ardeu, gritou e surrou até a morte a alma do menino que ali existia. E foi assim que naquela fatídica noite que o jovem Virgolino sumiu em meio as cinzas iluminadas pelo sol. Até hoje não sei se foi o justo Deus ou o próprio Diabo que ajuntou aquele mundaréu de sofrimento e fez dali nascer o maior homem do Sertão. Só sei que Virgolino morreu e Lampião nasceu, e esse diferente do outro, acordou no quente sol de meio dia com um brilho estranho nos olhos e uma sede furiosa de vingança..

Próxima parte – No cangaço com Lampião

Leia na íntegra:
por Brunna Guimarães