domingo, 2 de junho de 2013

Um pálido reflexo do homem pós-moderno





Na medida em que a razão instrumentaliza-se o homem pós-moderno vem sendo expropriado de si mesmo. Creio que podemos inferir no trecho do filósofo alemão Robert Kurz, justamente sobre a perda da identidade do indivíduo contemporâneo, que “se vê completamente anulado em face dos poderes econômicos”. (Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, tradução de Guido Almeida, Jorge Zahar, 1985, pág. 14).

Não tenho dúvidas que o esclarecimento e a “luz” da razão trouxeram inúmeros benefícios para a sociedade, porém devemos nos perguntar a que preço, pois se formos colocar na balança, diria que nada é mais valioso que a nossa subjetividade, pois esta é o alicerce, é a alma do Homem. E infelizmente, em nossa sociedade desfigurada pelo capital, a moeda de troca para atingirmos a enaltecida “emancipação do homem” é nos tornar escravos da razão técnica a serviço do capital.

Antes de me debruçar um pouco mais sobre a perda da nossa identidade autônoma para o mercado, devo dizer que fiquei instigada com o texto de Robert Kurz, pois não havia pensado com profundidade ainda (se é que agora penso, sic), no quanto esse mesmo sistema tirano que subjuga os colonizados ou operários modernos, que sustentam o capital, também algema de alguma forma os “supostos senhores desse modo de produção”.

A lógica do capital vem se tornando tão autossuficiente e tirana que os próprios senhores vêm sendo paulatinamente consumidos pelo ideal racional mercantil que eles - homens esclarecidos - criaram. Os filósofos Adorno e Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento estudaram exatamente como esta máquina capitalista vem mutilando até mesmo os senhores que dela se alimentam.  

A razão mercantilista e instrumental vem fugindo de si mesma, esvaindo-se da sua essência e autoconsciência de tal maneira que força Horkheimer admitir que a “máquina expeliu o maquinista; e está correndo cegamente no espaço”. Sem controle esta vem desvirtuando o sentido perene da razão e sendo alimentada pelo signo da irracionalidade. Essa barbárie moderna foi construída em cima de uma razão plastificada e dominadora que se amolda perfeitamente hoje aos interesses da lógica sombria e desumana do capital

“Sua necessidade não é menos aparente do que a liberdade dos empresários, que acaba por revelar sua natureza compulsiva nas lutas e acordos a que não conseguem escapar. Essa aparência, na qual se perde a humanidade inteiramente esclarecida, não pode ser dissipada pelo pensamento que tem de escolher, enquanto órgão da dominação, entre o comando e a obediência. Incapaz de escapar ao envolvimento que o mantém preso à pré-história, ele consegue no entanto reconhecer na lógica da alternativa, da consequência e da antinomia, com a qual se emancipou radicalmente da natureza, a própria natureza, irreconciliada e alienada de si mesma” (Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, Excurso I, tradução de Guido Almeida, Jorge Zahar, 1985, pág. 49)

Estes pensadores aprofundam a reflexão afirmando que os senhores do esclarecimento tendem a confundir liberdade com a busca da autoconservação. Ou seja, eles acreditam ser livres porque dominam e colonizam o mundo, porém nada mais são do que objetos da própria razão dominadora que criaram, são instrumentos da mesma natureza das quais dominam. A grande diferença entre estes e a massa operária do sistema, é que têm a alternativa de escolherem se querem estar no comando ou serem obedientes servos nas mãos de outros senhorios, também presos pela própria forca que inventaram.

Fora este pequeno farelo de liberdade, o burguês esclarecido, o neocolonizador, o homem branco engravatado, se vê refém da mesma violência que modela a sociedade industrial, a diferença é que este come caviar, numa imensa gaiola dourada, mas ainda sim continua aprisionado. A verdade é que a natureza dominadora instalou-se nos homens, e independente das classes, esta formata e ajusta a sociedade como um todo para se adaptar a razão instrumental.

E assim voltamos a cerne da questão abordada por Robert Kurz.  Aqueles senhores que desejam se conservar no comando, para se auto conservarem e legitimarem a dominação coadjuvante que causam, precisam ser ajustados em sua interioridade para se adequarem a lógica da funcionalidade imposta pelo sistema.   

E é nesse processo, que a subjetividade do ser, vem sendo esvaziada e coisificada para responder aos interesses da razão técnica. Esta razão nada ética ou justa está a serviço de um sistema neoliberal que mastiga e retalha o homem a seu bel-prazer para logo em seguida cuspi-lo fragmentado e reformulado, com uma nova identidade.

Este processo é observado por Adorno e Horkheimer, que percebem que tanto o indivíduo na Grécia Antiga quanto homem contemporâneo com a promessa de obter o esclarecimento, com o fim de “livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores”, e “dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber”, acaba por se sacrificar para se autoconservar. Mas é bom lembrar que esta renuncia e sacrifício são rigorosamente calculadas para garantir ao herói antigo e ao burgues sua proteção, “retorno à pátria e aos bens sólidos”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 56).

No excurso I, Adorno e Horkheimer continuam sua reflexão sobre a necessidade de sacrifica-se para dominar a natureza e os próprios homens. “Na história das classes, a hostilidade do eu ao sacrifício incluía um sacrifício do eu, porque seu preço era a negação da natureza no homem, em vista da dominação sobre a natureza extra-humana e sobre os outros homens. [Com isso], não apenas o telos da dominação externa da natureza, mas também o telos da própria vida se torna confuso e opaco” (ADORNO; HORKHEIMER, 1991, p. 60)

Este trecho da dialética casa perfeitamente com o pensamento de Robert Kurz, afinal ele diz que o próprio vencedor e conquistador deve também destruir a sua capacidade sensível de fruição, ou seja, sacrificar-se. “Quanto mais avançava na colonização do mundo exterior, tanto mais o homem branco precisava ajustar a si mesmo, e quanto mais assim se ajustava, mais precisava colonizar o mundo”. (Robert Kurz, Supressão e conservação do homem branco).

 O sacrifício do próprio individuo para dominar a natureza e realizar suas vontades “esclarecedoras”, converte-se em dominação com o fim último do lucro, seja no passado longínquo ou na atualidade. Ao analisar exaustivamente a antiguidade e as peripécias de Ulisses na Odisséia, Adorno e Horkheimer traçam um paralelo para entender como “a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 11).

Esta barbárie se configura devido o grande distanciamento da moralidade com esclarecimento, que transformando o potencial do progresso em anti-razão, acaba por fazer outra relação, progresso com violência e crueldade como pulsão para satisfazer necessidades inconscientes do ser. Com isso mais uma vez retomamos ao mito, ao mundo primitivo.

“A anti-razão do capitalismo totalitário, cuja técnica de satisfazer as necessidades, em sua forma objetualizada, determinada pela dominação, torna impossível a satisfação das necessidades e impele ao extermínio dos homens – essa anti-razão está desenvolvida de maneira prototípica no herói homérico que se furta ao sacrifício sacrificando-se. A história da civilização é a história da introversão do sacrifício. Ou por outra, a história da renúncia. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 61)

Esta dominação neurótica e as avessas se tornou tão poderosa e necessária para sujeitar a natureza exterior, humana ou não-humana, que o sujeito precisou subjugar a natureza dentro de si mesmo. Assim o homem contemporâneo vem tendo sua identidade retificada para se adequar aos valores vigentes do sistema capitalista. Nesta era tecnocrática e economicista, o individuo vem sendo abstraído e ajustado aos poucos para se transformar em mero instrumento de produtividade.

Isso o ocorre, pois para o individuo se auto preservar, o sistema impõe que ele se ajuste às exigências de preservação da lógica do capital. E aqueles que se recusam a aceitar esta ordem do império neoliberal são cruelmente excluídos pelas classes dirigentes que constroem justamente estes valores a serem introjetados e seguidos.

Finalizo a questão com uma frase de Horkheimer que depois de muito analisar o passado explicita a importância dos homens contemporâneos se perceberem como a própria causa da enfermidade da humanidade, mas também a própria cura. “Até época bem recente na história ocidental, faltavam à sociedade suficientes recursos culturais e tecnológicos para gerar uma compreensão entre indivíduos, grupos e nações. Hoje, as condições materiais existem. O que está faltando são homens que compreendam que são eles mesmos as vítimas ou os executores da própria opressão”.

Como o próprio Robert Kurz pontua, o homem branco, fustigado por essa coerção cega e auto-imputada, por muito tempo conduziu seu império mundial com a crueldade inerente às relações coercitivas inconscientes. O que é preciso reconciliar, portanto é a sensibilidade com a razão, só assim caminharemos para o ideal luminoso e construtivo do esclarecimento pacifico. A loucura do passado e caos do presente nos ensina, ou melhor nos impõem uma séria mudança de paradigma. A insurreição ética dos valores humanos é o único caminho possível para a humanidade verdadeiramente se distanciar dessa barbárie “suja e encharcada de sangue” e legitimar uma civilização plena, íntegra, e sustentável.

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“Bater no peito tornou-se mais tarde um gesto de triunfo: o vencedor expressa que sua vitória é sempre uma vitória sobre a própria natureza”

Esta nota da Dialética do Esclarecimento remonta a necessidade do homem de sacrificar e renunciar os ímpetos da própria natureza interior, para astutamente dominar e obter um triunfo maior posteriormente. Nesse caso, o contexto do comentário remete-se no momento em que Ulisses percebe que suas próprias servas o traem indo dormir com os odiados pretendentes que tomaram sua casa, seus bens e praticamente sua mulher.

“Assim como a cadela valente anda em redor de seus frágeis cachorrinhos e ladra para o desconhecido, instigando-se para a luta, assim também ladrava o coração em seu peito, enfurecido pela conduta vergonhosa das servas. Batendo no coração, punia-o com as seguintes palavras: Aguenta, coração! Mais duras penas suportaste no dia em que o ciclope monstruoso devorou enfurecido meus bravos amigos. Suportaste sozinho até que, graças a um estratagema, escapaste da caverna onde antevias uma noite horrorosa!  ‘Assim falou Ulisses, punindo o coração no peito irado. Logo o coração recobrou a calma e quedou inabalável’ (Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, 1985, Editora Vozes, Excuso I, nota 5)

Adorno e Horkheimer percebem que no momento em que Ulisse, segura seus instintos e recobra a calma ele renuncia sua satisfação pulsional para dominar seus próprios sentidos em favor de um “olhar posto no futuro”. “O sujeito, ainda dividido e forçado a usar de violência contra a natureza tanto dentro dele quanto fora dele, "pune" o coração exortando-o à paciência e negando-lhe com o olhar posto no futuro - o presente imediato”.

 Ulisses controla seu coração que batia ansioso pela morte das suas servas, justamente para se auto conservar-se. Se o peito de Ulisses latejava rebelde, a inteligência e o discernimento dispersavam essa mesma excitação. Isso demonstra o amadurecimento da sua identidade interna, pois caso ele se entregasse aos prazeres efêmeros de sua sede por sangue, seria descoberto antes de cumprir seus designíos, que era matar os pretendentes que cortejavam sua esposa, tomar posse do seu castelo e todos os seus bens em Ítaca. 

Se Ulisses não tivesse utilizado a métis desde o início de sua viagem para retornar ao lar, provavelmente, como seus companheiros, teria se perdido no vasto mar das seduções, que tanto o golpearam para fazê-lo gozar e se entregar a natureza pulsional do ser. Com essa escolha ele estaria renunciando não só sua esposa, seu filho, seus bens e a triunfal vingança, como também, e acima de tudo, sacrificaria sua própria vida.  Por isso, o herói homérico suporta as duras penas da Odisséia e freia astutamente seus impulsos para lograr.

'Aguenta, coração! Mais duras penas suportaste no dia em que o ciclope monstruoso devorou enfurecido meus bravos amigos. Suportaste sozinho até que, graças a um estratagema, escapaste da caverna onde antevias uma noite horrorosa!" Assim falou. punindo o coração no peito irado. Logo o coração recobrou a calma e quedou inabalável. Ele. porém, continuava a revolver-se para lá e para cá.." (Canto XX. 13/24, A Odisséia, Homero, 2001).

Freud em seu livro o “Mal-Estar da Civilização”, reflete justamente como as exigências das nossas pulsões vem produzindo um mal-estar nos seres humanos. Para ele, o sentimento incontido, levado ao grau máximo de emoção causa uma agressividade que destrói a racionalidade da civilização, levando a humanidade a barbárie, ao re-encantamento destruitivo de si mesmo. Assim de acordo com Freud para o bem da sociedade o indivíduo precisa ser sacrificado, ele coloca a civilização possa se desenvolver o homem deve pagar o preço da renúncia da satisfação passional.

Assim Adorno e Horkheimer afirma que o individuo que ainda não está completamente configurado em sua identidade interna, tem seus ímpetos, seu ânimo e seu coração excitados independentemente da vontade dele, e assim são levados pela maré das paixões. Para se firmar como ser autônomo, e não apenas ser um corpo recheado de natureza e pulsões Adorno pontua que o sujeito perfura seu próprio coração com as laminas da razão. Depois que a razão consegue domar o instinto, depois que o coração foi punido pelo próprio detentor, este novo ser estremece não pela fúria da paixão mas pela dominação de sua natureza intra-humana.

No livro 1 da ‘República’ de Platão, há um diálogo entre Céfalo e Sócrates, que aborda justamente esta “paz” interior que o sujeito sente quando consegue por um fim nas paixões que o dominam. Assim Sófocles diz: “Quando as paixões cessam de nos repuxar e nos largam, somos libertos de uma hoste de déspotas furiosos”. Nesse caso especifico, as paixões foram resfriadas devido à velhice de Sófocles, que em vez de viver preso das saudades poéticas, se vê liberto das volatidades passionais que governavam seu ser da juventude a sua maturidade.

Dominado pelos seus próprios déspotas internos, o homem se transforma em joguete de seus momentos intempestivos. Este, escravo do seu próprio corpo se vê completamente debilitado de nada saber além do que a carne e os sentidos lhe proporciona. Nesse sentido, o individuo precisa fazer a escolha de ceder ao caminho borbulhante das paixões, ou dominar sua natureza para refrear os instintos e ser tornar soberano das próprias pulsões míticas.

Com isso a razão esclarecedora sobrepuja e domina o império dos sentidos, tendo assim, o Ser uma suposta aparência de “liberdade” para agir de forma ajustada aos desígnios dessa razão estética, vazia em essência que impera em nossa contemporaneidade. O intuito?  Chegar a tão idolatrada Ítaca, pouco se importando com os meios para atingir este triunfal de retornar a esta barbárie trasvestida de razão.   

B.G

Dúvidas sobre a teoria da verdade...





O questionamento acerca do que vem a ser o conhecimento é algo que povoa a mente do ser humano desde as suas origens. E hoje parece que persiste a necessidade de conseguir uma resposta que alcance a profundidade que esta palavra traz em sua essência. 

Tentar desvelar a verdade do conhecimento é uma tarefa quase impossível, mas ainda sim, muitos pensadores incendiaram suas mentes e espíritos em busca de respostas ou no mínimo direcionamentos. Acredito que aqueles que não se debruçaram primeiramente sobre o conceito de verdade, pouco vislumbraram da indelével luz do conhecimento. Para Johannes Hessen, por exemplo, a essência do conhecimento está intrinsicamente ligada ao conceito de verdade. Hessen em suas exposições considera que só o conhecimento verdadeiro é conhecimento efetivo. “’Conhecimento não-verdadeiro’ não é propriamente conhecimento, mas erro e engano”.  

Tanto Hessen quantos outros filósofos de diferentes tempos e escolas se questionaram sobre a então, verdade do conhecimento. A verdade para muitos deles deveria consistir na concordância da “figura” com o “objeto”. Acredita-se assim que um conhecimento é verdadeiro na medida em que seu conteúdo concorda com o objeto intencionado. Segundo inúmeras correntes filosóficas o próprio objeto (exterior a mente), não pode ser nem verdadeiro nem falso, já que este de certo modo, está para além da verdade e da inverdade. Mas de antemão antes de mesmo nos debruçar sobre a “estreita” ligação entre a figura e o objeto urge refletirmos se é possível que as coisas do mundo exterior sejam conectadas e acessíveis à mente. E caso seja possível devemos considerar também qual grau de verossimilhança entre os dois. Não podemos deixar de pensar ainda se de fato conseguimos extrair alguma verdade das coisas exteriores ou o seu contrário, que nenhuma verdade possa transcender a mente do individuo. Inúmeros filósofos acreditam, e também o próprio Bertrand Russel na qual irei me ater mais a frente, que a verdade esteja calcada em nossas crenças, e com exceção dos Universais e dos conhecimentos a priori, esta “existe”, ou melhor, pode ser conceituada, assim como a falsidade, quando alimentada por nossos juízos e crenças. 

No capitulo 12, de sua obra “Os problemas da filosofia”, Russel propõe sua teoria acerca da verdade. Ao nos depararmos com a teoria verificamos que Russel defende que qualquer teoria da verdade tem de obedecer a três requisitos básicos: permitir a existência de crenças falsas; aceitar que sem agentes cognitivos que tenham crenças verdadeiras ou falsas não há verdade nem falsidade; e por fim aceitar que, apesar de uma crença ser verdadeira, ou falsa, esta e apenas uma a realidade extramental. Para o filósofo nada na qualidade interna da crença a faz ser verdadeira ou falsa. Creio que com isso podemos inferir também que nada de verdadeiro existe anterior a nossas crenças. Para o pensador as crenças se sustentam por elas mesmas, sem o postulado de uma entidade originária. Essa afirmação me deixou um tanto confusa, principalmente quando Bertrand discorre sobre os graus de auto-evidência.

Em sua lógica, as crenças têm diferentes graus evidência lógica, é de se pensar, portanto que estas teriam que ter uma certa qualidade intrínseca, por elas próprias. O que acabaria contrariando a afirmação que é por meio dos agentes cognitivos, e tão somente, que chegamos a alguma verdade.

Pelo que entendi acerca das exposições de Russel, é que fica evidente que se não há crença, não pode haver algo que seja falso, nem tão pouco verdadeiro, no sentido em que a verdade para ele é correlativa da falsidade. A lógica proposta por Russel conclui que se mundo fosse só composto por matéria, não teria lugar para a falsidade, já que os "factos" que ocorrem neste mundo, não têm propriedade de ser nem verdadeiro e muito menos falso. 

“O primeiro ponto acerca do qual é importante estar certo é a relação da verdade e falsidade com relação à mente. Se estivermos certos em dizer que as coisas que são verdadeiras e falsas são sempre juízos, então seria evidente que não pode existir nenhuma falsidade e verdade a menos que existam mentes para julgar”, afirma Russel.

A lógica dele é bastante válida, porém, quando ele considera que a natureza da verdade, só existe no âmbito de nossas crenças, confesso que tive um estranhamento. A verdade para o pensador faz parte somente das nossas crenças e das asserções, uma vez que para ele a verdade dos enunciados é uma noção derivada da verdade das crenças. Fiquei confusa, pois não entendi como a organização das crenças e a justificação destas, transformam-se em verdades ou no mínimo conhecimento indubitável.  Até entendo que estas podem se tornar conceitos postulados como verdadeiros, porém, ele parece retirar a essência da Verdade, na qual talvez seja um conhecimento universal, sem espaço para falsidades. O que acabaria por retirar a ligação direta desta com o juízo humano, pois este tende a se equivocar constantemente. O homem teria que usar então outro meio, que não o juízo para percebê-la, algo talvez advindo de uma razão inconsciente, quase como um saber tão certo e sutil, que nem ajuíza saber por que sabe. 

A obra de Russel é de suma importância para refletirmos acerca da teoria do conhecimento, mas até onde consegui acompanhar a exposição do pensador não encontrei resposta à pergunta que mais me instiga. O conhecimento legítimo não deveria ser aquele que possui necessidade lógica e validade universal? Nesse sentido, como ocorre esta passagem das crenças para a verdade? Se nesse caso não existe uma epistéme, mas uma dóxa, que ainda que justificada, seja apenas uma razão provável, e não uma razão logicamente necessária. A partir daí, fiquei completamente perdida, muito provavelmente por ignorância mesmo ou falta de tempo de ler sua obra com mais atenção. Mas a verdade, se é que posso usar este termo com vazão, é que não encontrei nesta obra de Russel, não até onde li, resposta acerca de como uma crença justificada em outra crença não carece de um certo fundamento.  

É estranho pensar que as verdades se encontram encasuladas e presas no interior de nossas crenças. Na verdade, nem sei se para ele é possível atingir a Verdade plena em sentido, ou se somente somos capazes de ajuizar pensamentos que cremos ser verdadeiros. A lógica dele nos leva a pensar que as verdades só existem, pois acreditamos através dos sentidos e das crenças que algo seja verdadeiro. Ao ler sobre sua teoria da verdade, fiquei com a ideia de que verdade é um conceito humano, que esvaziado de crença justificada, por si só não existe.

Enfim devo estar confundindo o conceito de conhecimento com verdade, pois se estes estão estreitamente ligados, como pode as crenças serem os juízes da verdade, quando percebo claramente que existem conhecimento indubitáveis que transcendem a minha mente? Se assim não for como explicar a verdade dos universais e os conhecimentos a priori? Estes têm uma anterioridade lógica e não são cronológicos, logo parecem ser completamente independentes dos conceitos e juízos que aferimos. 

E caso os universais e os conhecimentos a priori não sejam verdades que reinam acima dos juízos o que são então? Conhecimentos inquestionáveis são verdades ou não? Como entender que o conceito de verdadeiro de qualquer crença não dependa de algo exterior à própria crença? Como acreditar que um conjunto de crenças cria a verdade e não é esta que primeiramente as direcionam?  

Sei o quanto estou distante anos e estudos luz de abarcar o que seria um conhecimento ainda que ínfimo da verdade, do ponto de vista racional claro,  mas tenho uma leve impressão por tudo que li e reflito de que certas verdades já estejam contidas, de alguma maneira originária ou mesmo embrionária, nas intuições intelectuais do indivíduo.  Pois se assim não for como entender que não existe uma ou mais instituições verdadeiras já inseridas na mente para com isso termos a possibilidade de termos crenças?
Para Bertrand a consciência cognoscente não retira seus conteúdos da razão, mas da experiência. Ao ler Russel fiquei na dúvida se para ele somos uma verdadeira tábula rasa, uma folha em branco sobre a qual a experiência irá escrever e principalmente se todos os nossos conhecimentos, mesmo os mais universais e abstratos provenham simplesmente da experiência.

Até o ponto em que Russel descreve os conceitos como advindos da experiência, creio que entendi um pouco seu pensamento, porém, sou mais adapta a corrente que acredita que o conhecimento transcende os conceitos e a linguagem. A meu ver os conceitos são os tijolos, mas a maneira de erguer o edifício bem como toda a estrutura da construção já deve estar condicionada a uma função primeira e imanente da consciência. 

A filosofia de Descartes me é mais bem vinda, já que esta postula que, há em nós um certo número de conceitos inatos, conceitos que são, na verdade, os mais importantes, fundamentadores do conhecimento. Ressalta-se que estes não provêm da experiência, mas simplesmente constituem um patrimônio original de nossa razão. 

É importante destacar que se em Descartes esses conceitos estão mais ou menos prontos em nós, para outros pensadores, a exemplo de Leibniz, eles existem em nós apenas potencialmente. Segundo este filósofo, as ideias inatas existem apenas na medida em que nosso espírito nasce com o potencial de construir determinados conceitos independentemente da experiência. 

Mas voltando a Bertrand, mesmo que os conceitos advindos da experiência sejam sumamente importantes, é preciso inferir que existem também conhecimentos advindos de um discernimento imediato tão luminoso e inquestionável que não existe a possiblidade de aferirmos que ele seja verdadeiro ou falso. Ou seja, este tipo de conhecimento transcende os nossos juízos, o que nos leva a pensar que podem estar fora da cadeia mental do indivíduo. 

Sobre os Universais, Bertrand tenta de diversas formas provar que seu ser é meramente mental, porém não consegue, no máximo delineia que estes são objetos de pensamentos quando são conhecidos. Ao final do capítulo “o mundos dos universais”, o filósofo simplesmente relega aos universais a subsistência, já que segundo ele, é conveniente falar apenas da existência de coisas contidas no tempo. Ressalto que ele usa o termo subsistência não no sentido negativo da palavra, mas pontua que sendo os universais atemporais, não é possível conceitua-los como existentes, já que o mundo do ser é imutável, exato, lógico e eterno. O estranho é que isso deveria corresponder muito mais com o ideal de verdade do que uma “verdade” alicerçada pela crença e juízos constantemente falhos e maleáveis. Fiquei um tanto perdida quando Russell se refere aos aos Universais, como aqueles que “são”. Não encontrei explicação nenhuma do que consiste o ser das relações. Ele se limita apenas a dizer que não é nada mental. 

Mais uma vez li um trecho de Russel, e fiquei com sem entender o que ele quis dizer. “Diz-se que a marca da falsidade é não ter coesão no corpo das nossas crenças, e que a essência de uma verdade é fazer parte do sistema perfeitamente acabado que é A Verdade”. Realmente não sei o que ele quer dizer com sistema acabado da Verdade, não dentro da lógica dele. Quando ele coloca “A Verdade”, em caixa alta o que significa? Esta não ganha simbologia e vida própria, como se “pequenas” verdades caminhassem por meio de uma lógica definida em busca da verdade absoluta? Como pode existir uma verdade absoluta no pensamento de Russel? É possível que a crença, particular a cada individuo, chegue a uma verdade inquestionável?  Como isso ocorre se no que diz respeito aos dados do sentido, ganhamos de brinde uma privacidade obrigatória, já que há apenas uma pessoa relativamente à qual tais fatos podem ser auto-evidentes no nosso sentido.  Para Russel algum fato sobre qualquer coisa particular existente pode ser auto-evidente para mais de uma pessoa? Creio que não, pois assim a verdade teria que estar para além da mente pensante. O que para ele não ocorre. 

Por outro lado, sabemos que os fatos sobre os universais não tem esta privacidade. Logo fica a pergunta se podemos ou não conhecer a verdade por duas vias distintas? A dificuldade que encontro em Russell é o pouco espaço que ele dá ao conhecimento dos universais na teoria da verdade. 

Veja o que ele diz sobre as percepções a priori. “Parece-me desnecessário investigar se existem percepções desta espécie; certamente não estou preparado para negá-las dogmaticamente. Mas digo que, mesmo que existam, são desnecessárias como uma base para a física. As percepções de que não somos suficientemente conscientes para expressá-las em palavras são cientificamente negligenciáveis como dados; nossas premissas devem ser fatos que tenhamos observado explicitamente. A vaguidade, sem dúvida, está onipresente e é inevitável, mas é somente na proporção em que a superamos que a ciência exata se torna possível”. 

 Não sei..ele parece deixar de lado alguma coisa de importante que não sei definir. Para Johannes Hessen o caráter transcendente é adequado a todos os objetos de conhecimento. “Dividimos os objetos em reais e ideais. Chamamos de reais ou efetivos todos que nos são dados na experiência externa ou interna ou são inferidos a partir dela. Comparados a eles, os objetos ideais aparecem como irreais, meramente pensados. Mas apesar de sua “irrealidade”, defrontam-se com nosso pensamento como algo em si mesmo determinado e independente”.

Para Russel a verdade não vai mais além do que a inferência garante, o que soa estranho, pois com isso o juízo acaba tendo mais valor que o próprio objeto. Como é possível chegarmos a uma verdade plena quando se perdura infinitamente as relações de juízo? A verdade para Russel, mesmo quando percebida e justificada terá sempre a possibilidade de desfazer-se e torna-se falsa dependendo do juízo humano? Não entendo..já que isso a meu ver fere o que deveria ser a natureza de uma verdade,  não sei.. uma certa inquestionabilidade por natureza e principalmente um não espaço para juízos. 
O conhecimento de um sentir sem a linguagem conceitual me parece tão verdadeiro quanto os fatos experienciados. Aliás, tenho a impressão que outro tipo de conhecimento nada mais seja do que uma pálida busca de se unir a esta linhagem mais pura do conhecer. Um sentir tão lógico e intenso, que afasta qualquer existência de  juízo..

B.G

RASCUNHOS SOBRE A OBRA DE SANTO AGOSTINHO




“Dize à minha alma: Eu sou a tua salvação. Dize de forma que eu te escute. Os ouvidos do meu coração estão diante de tu, Senhor; abre-os e dize à minha alma: Eu sou a tua salvação. Correrei atrás destas palavras e te segurarei”.

A obra de Santo Agostinho propõe articular que a ideia de Deus, um Ser pleno, perfeito e absoluto, é uma verdade e um conhecimento universal intrinsecamente ligado ao espírito humano. Em seu livro “As Confissões”, escrito aproximadamente entre anos 397/398, Agostinho, além de fazer um relato da própria vida à luz da sua conversão, de maneira fervorosa e poética louva e clama a Deus, para que este, Senhor da Verdade, ilumine seu espírito com a revelação. Para o teólogo a alma do homem seria a “estreita morada para receber a Deus”, e só pela graça divina esta pode ser  dilatada, purificada e preenchida com a paz iluminadora. 

Para Agostinho, “Deus arrancou-se de onde nunca se retirou”, ou seja, ele afirma que o conhecimento de Deus está naturalmente presente no coração do homem, e todo ser racional pode, por meio da vontade plena, reconhecer o universo como criação Deste. De acordo com ele, a fonte da verdade gera, por assim dizer, uma espécie de apelo que nos faz buscar a lembrança de Deus em nosso interior. E por maior que seja nossa limitada razão que não consegue  abarcar, e jamais conhecerá a Deus tal como ele é, o homem deve  reconhecer e amar a Deus sob todas as coisas, pois só assim a alma, sabendo o que ela é, viverá de acordo com sua verdadeira natureza – inteligível, sagrada e eterna. 

“É, portanto a alma inteira que deve amar aquilo que somente o pensamento pode contemplar e é pelo amor assim esclarecido pela razão que a alma atingirá finalmente sua meta; não somente conhecer seu fim, mas, em certo sentido, sê-lo. É com efeito, próprio do amor que o objeto amado reaja, na alma, de alguma maneira sobre isso que ele ama para transformá-lo em sua imagem e assimilá-lo. Amar o material e o perecível é materializar-se e condenar-se a perecer; amar o eterno é, ao contrário, eternizar-se; amar Deus é tornar-se ele” (Trindade, XI).
Em sua obra, Santo Agostinho não apenas disserta com profundidade sobre como a fé é via de acesso à verdade eterna, como também visiona a sabedoria como ideal da verdade para que o homem desfrute e conheça a si mesmo e a realidade como um todo, a partir de Deus, como criador. Ou seja, a noção de sabedoria é um dos pontos centrais da filosofia agostiniana, e coloca o pressuposto que “todo conhecimento verdadeiro é resultado de um processo de iluminação divina, que possibilita ao homem contemplar as ideias, e arquétipos eternos do mundo”. (Étienne Gilson, Introdução ao estudo de Santo Agostinho).

A amplitude de sua reflexão abrangia tantas questões filosóficas e morais, entre elas, sobre a Criação, identidade do Ser, tempo e finitude, a graça e predestinação, vontade humana e livre arbítrio, existência do bem e do mal, ética e justiça, que Agostinho, é considerado o precursor da ligação entre a filosofia e o cristianismo. O pensamento de Agostinho é um importante eixo na orientação da visão do homem medieval sobre a relação entre a fé cristã e o estudo da natureza. 

Por mais que ele reconheça a importância do conhecimento e da razão, tendo em vista a busca pela felicidade intrínseca do ser, Agostinho em sua obra, não concebe a felicidade como possível separada da Verdade, ou seja, para abranger a plena sabedoria e beatitude é preciso ter a posse da verdade absoluta, na qual é o conhecimento de Deus como o Criador do universo e Bem supremo.

Segundo este grande teólogo existe uma luz eterna da razão que procede de Deus e atua a todo o momento possibilitando o conhecimento das verdades eternas. Nesse sentido, fazendo uma bela comparação, Agostinho propõe que se para ver além do olho e da coisa, é necessária a luz física, do mesmo modo, para o conhecimento intelectual é necessário uma luz espiritual. 

“Assim como os objetos exteriores só podem ser vistos quando iluminados pela luz do sol, também as verdades da sabedoria precisam ser iluminadas pela luz divina para se tornarem inteligíveis”. (Confissões, Livro III).

Contudo, ele pontua também que a iluminação divina, não dispensa o indivíduo de ter um intelecto próprio, ou seja, a iluminação incide sobre o intelecto com o intuito de direcioná-lo ao caminho do bem, porém todo o percurso a ser trilhado deve ser feito pela vontade do homem, de pensar e agir em virtude de uma ordem natural provinda de Deus.

 A fé, de acordo com ele, não diminui em nada a penosa força dos argumentos racionais, usados para demonstrar a existência de Deus e seus indícios, pelo contrário, ela o ajuda a descobrir mais claramente a racionalidade neles.

Agostinho entende que é a fé em Cristo que restaura a condição decaída da razão humana, é o conhecimento e aceitação de Deus como bem supremo que sana a alma das suas deficiências e corrige a razão para melhor orientá-la à solidez da Verdade.

 Para o teólogo a alma do homem é livre para escolher qual caminho seguir, porém Agostinho afirma que muitas vezes o homem faz mau uso do livre arbítrio, e inverte a transcendência hierárquica da alma sobre o corpo, e assim voltada e aliciada pela matéria, esta acaba por sucumbir ao contato com o sensível, e aos poucos vai “esvaindo-se no não-ser e considerando-se a si mesma como um corpo”. 

De acordo com Agostinho a alma que peregrina por muito tempo longe da luz, distante de Deus, corre um sério risco de torna-se cega. Seguindo esta linha de pensamento, é como se a alma, fosse - por vontade própria - na contramão de Deus, na direção das coisas terrenas, carnais e sensíveis, assim esta vai se dissipando e se reduzindo ao nada, na medida em que se afasta da unidade divina para se entregar a “inúmeras bagatelas”.  

Em diversos momentos Agostinho pontua que a vontade do homem é essencialmente criadora e livre, e nela tem raízes a possibilidade de o homem afastar-se de Deus. “Tal afastamento significa, porém, distanciar-se do ser e caminhar para o não-ser, isto é, aproximar-se do mal”.
Agostinho acredita que sem o auxilio da graça divina, o livre-arbítrio tende a eleger o mal e viver sob a defeituosa sombra da formosura dos vícios. Isso ocorre, pois o homem é um ser limitado, e pode agir desordenadamente e imoralmente contra os desígnios de Deus. Deve-se considerar, contudo, que esta ação não é causa eficiente, mas deficiente, pois é uma ação em direção ao “não-ser”, ao mal, contra a natureza do Ser, que é Deus.
Porquanto o mal não tem realidade metafísica e segundo o pensador só pode unicamente provir do homem, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser, ou seja, o Bem.

O pecado, nesse sentido, só pode prejudicar a criatura sob a pena da desordem, que, não podendo lesar a Deus, prejudica somente a si mesma, determinando a dilaceração da sua própria natureza. 

 Assim, verdadeiro mal, princípio dos outros males é o pecado que consiste na ausência do amor de Deus. Somente por meio da graça, é que a alma dirige-se para o bem eterno. Caso um novo desejo e novas graças não surjam para mais uma vez elevarem a alma do homem até Deus, esta cairá de vez na concupiscência e na ignorância.

Mas é justamente esta batalha da alma contra as paixões e seduções dos vícios terrenos que nos aproxima muito de Santo Agostinho, pois ele em toda sua obra, com foco nas “Confissões”, nos revela intimamente sua torturante luta interior antes de encontrar o altar da fé.  A alma de Agostinho sofria das mesmas paixões, das mesmas angustias e dúvidas que geralmente borbulham no espirito humano. 

“O inimigo dominava meu querer, e dele forjava uma cadeia com que me apertava. Ora, a luxúria provém da vontade perversa; enquanto se serve à luxúria, contrai-se o hábito; e se não se resiste a um hábito, origina-se uma necessidade. Era assim que por uma espécie de anéis entrelaçados – por isso lhes chamei cadeia –, me segurava apertado em dura escravidão. A vontade nova, que começava a existir em mim, a vontade de Vos honrar gratuitamente e de querer gozar de Vós, ó meu Deus, único contentamento seguro, ainda se não achava apta para superar a outra vontade, fortificada pela concupiscência. Assim, duas vontades, uma concupiscente, outra dominada, uma carnal, outra espiritual, batalhavam mutuamente em mim. Discordando, dilacerava-me a alma” (Confissões, Agostinho. 2000:209)

Segundo ele, que suspirava e suava pela verdade com cada fibra de seu ser, o coração do homem vive inquieto enquanto não repousa nos braços da verdade suprema; e para alcançar tal plenitude o homem precisa reeducar sua vontade para voltar ao seu lugar de origem natural, a sua pátria. 

O indivíduo precisa, portanto, buscar a graça de Deus com humildade e pedir para recebê-la.  “Aceitá-la é a verdadeira maneira de conquistá-la”. Quando Agostinho diz isto, mais uma vez afirma que a salvação mais se encontra no espaço espiritual interno, do que externo, pois na medida em que reconhece Deus dentro de si, o ser é tocado pelas mãos da Verdade eterna.
Mas atingir esta beatitude não é nada fácil, pelo contrário, poucos conseguem aderir à solidez da Verdade, pois, segundo Agostinho, a maioria prefere “roçar miseravelmente aos objetos sensíveis” a ponto de não distinguir mais o que é o amor sereno do prazer tenebroso ou mesmo até muitos sentem os indícios de Deus no mundo, porém estando de costas voltadas para a luz e com a face erguida para os objetos iluminados, só conseguem vislumbrar a beatitude, pois o rosto com que vê os objetos divinos não é realmente iluminado, já que não está voltado na direção de Deus.

Nesse sentido, para abarcar a sabedoria plena, que é Verdade pura e absoluta é preciso que a graça divina floresça no interior do ser e assim tocado pelo divino, o coração carregado de vontade busque se distanciar cada vez mais das coisas terrenas e finitas para clamar e louvar por Deus, criador do bem, do universo e infinitamente presente em cada partícula do tempo e do espaço. 

“Para lá chegar não se vai de navio, de carro ou a pé, nem sequer para andar o caminho que tinha percorrido desde a casa ao lugar onde estava sentando. Com efeito, não só o ir ao céu, mas também o atingi-lo não são mais que o querer ir, mas um querer forte e total, não uma vontade tíbia que anda e desanda daqui para ali, que luta consigo mesma, erguendo-se num lado e caindo no outro”. (Confissões, livro XIII)

Desta forma, quando o homem está disposto, aberto e entregue para receber humildemente a luz do conhecimento da existência de Deus, este dependendo da graça, recebe a Verdade, tendo suas fraquezas curadas, suas frouxidões reformadas e tua podridão reflorescida no campo fértil de Deus. 

Agostinho no trecho que segue descreve justamente sobre esta purificação do homem, quando é permitido por Deus que o corpo carregado de pecados se transforme em alma sem iniquidades. “Não escondas de mim a tua face: que eu morra para contemplá-la e para não morrer! Minha alma é morada muito estreita para te receber: será alargada por ti, Senhor. Estás em ruínas: restaura-a! Tem coisas que ofendem aos teus olhos: eu o seu e confesso . Mas quem pode purificá-la? A quem, senão a ti, eu clamarei: Purifica-me, Senhor, dos pecados ocultos, e perdoa a teu servo as culpas alheias? Creio, e por isso falo, Senhor: tu o sabes. Não te confessei contra mim as minhas faltas, meu Deus, e não perdoaste a maldade do meu coração? Não discuto contigo, que és a verdade, e não quero enganar a mim mesmo, para que a minha iniqüidade não minta a si mesmo. Não discuto contigo porque, se te lembrares de nossos pecados, Senhor, quem suportará teu olhar?” (Confissões, 2000).

O filósofo descreve em sua obra belas metáforas para purificação a alma, entre elas, afirma que o primeiro grau de cura da alma é remover a flecha que causa incômodo, ou seja, fazer a remissão dos pecados. O segundo grau será curar o próprio ferimento, o que se faz lentamente com o progresso realizado na renovação da imagem interior.

Aliás, a descoberta do homem interior é o alicerce de toda a obra Agostiniana.  Agostinho afirma que o homem que vive apenas das coisas exteriores, esvazia-se de si mesmo, mas quando interioriza, quando entra em si mesmo, quando se recolhe e penetra precisamente naquilo que é o homem interior, o mundo interior, é justamente ai que se encontra Deus.

Para Agostinho é preciso levar a sério que o homem é a imagem e semelhança de Deus, sendo que, o primeiro passo para encontrar a Verdade é a busca da sua imagem dentro de si, sua natureza divina dentro da intimidade do homem. “Os homens saem para fazer turismo, para admirar o pico das montanhas, o marulho das ondas dos mares, o fácil e copioso curso dos rios, as revoluções e giros dos astros. Entretanto, não olham para si mesmos” (Agostinho)

O filósofo de Hipona afirma ao longo de toda a sua obra que só podemos amar a Deus, quando a alma recorda, compreende e ama aquele por quem foi criada. O pesquisador Evilázio Francisco Borges Teixeira, em seu livro ‘Imago trinitatis’ contempla essa visão Agostiniana sobre importância da interioridade.

“Embora invisível, a missão divina é uma presença que se manifesta. Somente que esta manifestação é puramente interior que se produz no interior da alma, quando esta se recolhe para se ver como imagem e elevar-se à contemplação do Verbo. A alma experimenta, então, em si mesma, a presença do Verbo-Sabedoria” (Evilázio Borges, Imago Trinitates, 2003)

Nas confissões de Santo Agostinho fica claro que para encontrar a Verdade iluminadora é preciso fazer uma intensa incursão dentro de si mesmo, pois segundo ele andar por dentro é desejar as coisas de dentro, já andar por fora é desprezar as coisas de dentro e encher-se das de fora. “O orgulhoso lança fora o que tem dentro; o humilde o busca com afã. A soberba exila o homem de si mesmo; a humildade o devolve à sua intimidade”.

Finalizo com um trecho de Agostinho, na qual ele descreve efusivamente seu encontro com Deus, que de dentro para fora o iluminou e rompeu a nódoa da sua alma antes cética e irrequieta.
“Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova. Tarde Vos amei! Eis que Habitáveis dentro de mim, e eu, lá fora, a procurar-Vos! Disforme, lançava-me
sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo e eu não estava Convosco! Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria, se não existisse em Vós. Porém, chamastes-me, com uma Voz tão forte, que rompestes a minha surdez! Brilhastes, cintilastes, e logo afugentastes a minha cegueira!

Exalastes Perfume: respirei-o, a plenos pulmões, suspirando por Vós. Saboreei-Vos e, agora, tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me e ardi no desejo da Vossa Paz”

 - Com o Coração se pede. Com o Coração se procura. Com o Coração se bate. E é com o Coração que a Porta se abre.

B.G