quinta-feira, 13 de março de 2014

PASOLINI: FALÊNCIA DA ESPERANÇA



Frustração ou verdadeira ansiedade neurótica são hoje estados de alma coletivos”. Pasolini



"Deixai toda a esperança, vos que entrais”, assim diz Dante Alighieri na porta do seu Inferno. Tal aviso, muito bem poderia ser remetido ao pensamento desesperançado de Pasolini frente à sociedade italiana do pós-guerra que ele exaustivamente diagnosticou como “enferma e deformada”. Para Pier Paolo Pasolini, que se tornou conhecido por suas denúncias políticas que, sem dúvida alguma, incomodaram os mais diversos grupos influentes de sua época, as gerações posteriores à guerra cederam aos imperativos do capitalismo e consequentemente tiveram seus valores triturados em prol dos interesses nefastos do sistema dominante.

Ao lermos alguns de seus últimos textos, fica claro que para Pasolini a “sua Itália” muito se assemelhava aos baixios do inferno, já que, segundo ele, esta vinha sendo tragada e consumida pelos valores burgueses. Para o crítico italiano, após a segunda Guerra Mundial “um atroz e estúpido desenvolvimento”, sem a alcunha do verdadeiro progresso, começou a suscitar novas formas de “delinquências” em seu país.
Em sua obra “Os jovens infelizes”, Pasolini traz inúmeros ensaios críticos acerca das consequências trágicas da sociedade industrial, que, para o desespero do escritor, passava a “falsa tolerância de um poder ainda mais terrível do que o fascismo”.  Para o autor, o horrendo modelo consumista imposto à sociedade italiana pela burguesia, era ainda mais violento que o fascismo anterior, justamente por ser capaz de afetar a consciência dos indivíduos. Ou seja, ao longo dos ensaios pasolianos, conhecidos como escritos corsários, Pasolini demonstra o quanto o “progresso de comportamento” e os valores consumistas na Itália causavam-lhe repúdio. Principalmente pelo fato dos pseudo-valores mercantis afetarem a subjetividade do ser. Esta, segundo Pasolini, foi sendo miseravelmente esvaziada e coisificada para responder aos interesses da razão do sistema.

Para Pasolini, não só o italiano, mas todos os homens vinham sendo terrivelmente mastigados e retalhados pelo sistema neoliberal e em seguida cuspidos, com um ser reformulado, ajustado, de todo massificado para se adequar a lógica sombria e desumana do capital.

Segundo o filósofo Michel Lahud, no decorrer dos textos pasolianos,  fica claro, que a espiral de consumo seja fruto do cultivo artificial de carências dentro do quadro de um pretenso desenvolvimento da sociedade contemporânea. “O crítico italiano acreditava que uma sociedade ávida e cruel manejava mecanismos que solapavam os valores e culturas diferentes”.

O “vazio cultural” é justamente um dos pontos que Pasolini toca em sua obra “Os jovens Infelizes”. Segundo ele, o centro tradicional italiano rapidamente conseguiu destruir todas as culturas periféricas as quais eram asseguradas uma “vida própria”. “Estas eram essencialmente livre, mesmo nas periferias mais pobres e absolutamente miseráveis”.

Para Pasolini, uma das maiores barbáries ocorridas na Itália, se deve a indústria cultural ter construído uma razão plastificada e dominadora que, moldada aos interesses econômicos, buscou homogeneizar os costumes e as diferentes culturas italianas, para que estas convergissem às necessidades da classe dominante. 

Lahud, ao fazer a introdução da obra, salienta a coerência de Pasolini, lembrando que o fio de seus pensamentos tem sólida base na crítica social de que a mutação antropológica do homem contemporâneo ocorreu após o seu próprio “genocídio cultural”. 

Ao longo dos três últimos anos de sua vida, dedicou-se portanto Pasolini, e de maneira obstinada, ao trabalho de acusação e desvendamento dos mecanismos próprios dessa nova forma de poder facista, das suas trágicas incidências sobre o corpo e alma do povo italiano e dos graves perigos  sociais gerados pela brusca “mutação antropológica” que o novo regime estava promovendo. (Lahud,Michel, introdução, “Os Jovens infelizes” 

Ainda segundo Lahud, Pasolini nesta obra tem um olhar amadurecido e consequentemente assiste amargurado o seu país se entregar passivamente os imperativos do capitalismo e à corrupção associada a este sistema nascente. “O consumismo veio justamente romper o equilíbrio: aniquilando todos os modelos particulares de vida e os substituindo por outros, os quais, a maioria dos jovens não conseguia corresponder a ideologia do bem-estar e do consumo. O que acabava por incutir nessa mesma juventude a vergonha de sua própria condição social, tornando-a por isso ‘infeliz, neurótica e afásica’”, descreve Lahud sobre o pensamento do crítico italiano.

Quando Lahud comenta sobre o amadurecimento de Pasolini, é possível inferir que este se deve ao terrível desencanto que o italiano sofreu. Se no início de seus escritos Pasolini nutria uma espécie de nostalgia e idealizava a periferia de seu país, é importante destacar que ao longo dos anos, o escritor vai amadurecendo seu olhar e passa a suspeitar de que a mesma cultura proletária que ele exaltou também almejava ascender socialmente através da introjeção dos valores burgueses. 

É importante abrir umas aspas e dizer que grande parte dos filmes de Pasolini demonstravam a empatia que ele sentia pelo subúrbio italiano e seus costumes, como também a visão que esta tinha da metrópole. Ressalta-se que Pasolini buscava retratar inicialmente em seus filmes a cultura do proletariado como o último refúgio de inocência e pureza, justamente por acreditar que esta estava longe da influência consumista provinda da industrialização. 

Entretanto, depois de muito observar, Pasolini desiludido constata que o proletariado ou o jovem camponês que ele tanto idealizou ao longo da sua juventude buscava unicamente se igualar a classe burguesa, não só em termos econômicos, mas também em fatores sociais e culturais - era o surgimento da cultura de massa, a decadência de nosso tempo, como diria Pasolini. Assim ele percebe que o “povo nacional”, tão prestigiado em seus filmes vinha desaparecendo de seu país, pois o ideal burguês ininterruptamente assediava e penetrava as diferentes culturas com o intuito de fazê-las perderem sua a identidade, e assim tornarem-se homogeneizadas, assépticas, pálidas escravas da indústria cultural. 

Em algumas de suas obras é possível perceber que umas das críticas mais ferrenhas que Pasolini se debruça, trata justamente dessa “assimilação sem contestação” que a cultura popular faz da cultura burguesa, principalmente no que concerne ao consumo, visto que nesta relação só os interesses da burguesia são respeitados. “Enquanto transformação (por ora degradação) antropológica das pessoas, o consumismo é para mim uma tragédia”, enfatiza Pasolini. O inconformado crítico italiano irá afirmar ainda, ao longo de sua obra, que considera que a destruição e substituição de valores na sociedade italiana levou “mesmo sem carnificinas e fuzilamentos de massa, à supressão de largas faixas da sociedade”.

Assim que Pasolini compreende que o “mal burguês” se alastrava progressivamente sobre quase toda a sociedade italiana, ele adota um “tom permanentemente amargurado do mais absoluto desespero”. Sobre isso, Lahud destaca que depois desta trágica percepção, fica claro para Pasolini que seus escritos não poderiam pretender atingir objetivamente os jovens e operários que “vivem uma experiência originária do mundo totalmente alheia à sua”.

Lahud pondera que para Pasolini, sem sombra de dúvida, seria justamente esta uma das maiores violências do “novo fascismo”, ou seja, a de conseguir apagar da realidade todo e qualquer vestígio de uma ‘antiga maneira de ser’. “A de colocar os jovens, em sua grande massa, numa situação histórica tal que os obrigue a viver a própria infelicidade sem que nada possa fazê-los vir a tomar clara consciência dela”. 

“O poder do consumo, ruína das ruínas”

Frustração ou verdadeira ansiedade neurótica são hoje estados de alma coletivos”. É assim que Pasolini percebe a sociedade ao seu redor. Segundo ele, depois que o sistema começou uma obra para padronizar e destruir qualquer autenticidade e concretude, o “futuro se tornou iminentemente apocalíptico”. O novo aparelho fascista impõe modelos desejados pela nova industrialização, “que não mais se contenta com ‘um homem que consuma’, mas pretende ainda que se tornem inconcebíveis outras ideologias que não a do consumo. É de um hedonismo neolaico, cegamente alheio às ciências humanas”, diz Pasolini em ‘Os Jovens infelizes’.

Pasolini ao longo desta obra registra com empenho os extremos perigos da industrialização e principalmente discorre sobre a impossibilidade material dos jovens proletários e subproletarios de realizar os modelos culturais impostos pela burguesia. Para Pasolini, a juventude italiana se tornara “infeliz, neurótica, afásica, obtusa e presunçosa” graça às mil liras a mais que o “bem-estar” lhe tinha inesperadamente enfiado no bolso. “De fato não é uma mudança de época que vivemos, mas uma tragédia”, diz Pasolini que constantemente quase grita seus sentimentos ao leitor, tamanho a sua revolta frente à realidade indigesta ao seu redor. “É melhor ser inimigo do povo do que inimigo da realidade”, afirma ele de forma ousada, sabendo que seu engajamento politico e social era visto como uma ameaça para as classes dominantes da Itália.

Ao ler alguns de seus escritos fica quase evidente entender por quais motivos Pasolini foi tragicamente assassinado e talvez muito mais difícil de aceitar que as mãos macias de um jovem mancebo o tenham realmente o levado a morte. Mais crível pensar que suas críticas ácidas sobre a realidade italiana e o sistema capitalista, pesaram mais para seu fatídico fim.

Televisão: remanejando a subjetividade

Mas voltando aos ensaios de Pasolini, que descrevem e denunciam racionalmente a realidade atual à sua época, nos chama atenção ao grau de responsabilidade que o crítico dar aos meios de comunicação, no sentindo de instalar, consumar e perpetuar os signos de poder. “É através do espírito da televisão que se manifesta concretamente o espirito do novo poder”, diz Pasolini, que completa afirmando que esta (a televisão) não é apenas um lugar por onde as mensagens circulam, mas um centro elaborador de mensagens. “É o lugar onde se concretiza uma mentalidade que de outro modo não se saberia onde instalar”. E assim ele continua:

“Não há dúvida (os resultados o demonstram) de que a televisão é o meio de informação mais autoritário e repressivo do mundo. Comparados a ela, os jornais fascistas e as inscrições de slogans mussolinistas são risíveis: como comparar (dolorosamente) o arado comparado a um trator. O fascismo, insisto, no fundo não foi capaz nem de arranhar a alma do povo italiano: o nova fascismo, através dos novos meios de comunicação e de informação (especialmente a televisão) não só a arranhou, mas a dilacerou, violentou, contaminou para sempre”.


É importante destacar que as influências dos meios de comunicação sobre a formação da subjetividade do individuo já foram muito estudadas pelos teóricos da Escola Frankfurt. E tanto os frankfurtianos quanto Pasolini, coincidem no fato de atribuírem os meios de comunicação de massa um poder simbólico fortíssimo, que age na estruturação e no remanejamento do psiquismo.
Para o sociólogo alemão Theodor Adorno (1903-1969), por exemplo, o sistema capitalista com suas inúmeras tecnologias, transformaram, ou melhor, degeneraram a arte e cultura em mera mercadoria da indústria. E ele complementa que os meios de comunicação vinham causando nas pessoas, uma maior massificação do senso crítico e conformidade com os valores e padrões consumistas. 

Adorno, Horkheimer, Debord e Pasolini, todos problematizaram as consequência nefastas da televisão na subjetividade do indivíduo e demonstraram como o homem pós-moderno vem sofrendo um retrocesso de sua capacidade crítica para se transformar numa marionete fabricada em série. Segundo estes pensadores, o homem se tornou prisioneiro de uma “camisa de força simbólica”, onde os signos cada vez mais impõem valores morais e padrões culturais de um grupo dominante. 

Guy Debord em seu livro “A Sociedade do Espetáculo” faz uma aguçada análise de como o homem moderno deixou de viver para apenas contemplar o espetáculo do novo paradigma cultural, postulado pela ordem do mercado. Para Debord, o espetáculo é um instrumento-meio perfeito que converge apenas os interesses diretos ou indiretos do capitalismo:

O espetáculo é o sol que não se põe no império da passividade moderna. Recobre toda superfície do mundo e banha-se indefinidamente na sua própria glória. (...) O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que ao cabo não exprime senão seu desejo de dormir (DEBORD, 1997, p. 12).

Tanto Pasolini quanto Adorno e Horkheimer analisaram como a indústria cultural vinha afetando a consciência do povo. Demonstraram, por exemplo, em alguns de seus estudos que os meios de comunicação de massa propagavam initerruptamente os ideais burgueses para o povo, promovendo assim uma assimilação acrítica desses valores pela classe subalterna. Segundo eles, os produtos sugeridos por esses instrumentos culturais estimulavam o consumo e promoviam uma assustadora alienação. “A humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie” (Adorno e Horkheimer, 1985,).

Crítico radical

Entre as várias facetas de Pasolini, percebemos que ele foi um grande observador da virada irreversível do mundo e fez um poderoso e minucioso diagnostico dos tempos que viriam. Pasolini problematizou e polemizou a situação politica e social da Itália de maneira tão ácida e forte em seus últimos anos que acabou sendo isolado em relação seus contemporâneos e talvez seu olhar crítico e sua posição política o tenham levado também a morte, em 1975.
Pasolini foi um intelectual extremamente lúcido ao perceber que as novas conquistas do “progresso” recaem sempre, fora do palácio, sobre os “verdadeiros protagonistas da história como espoliação de valores e degradação”. O triste fim de Pasolini me parece ser mais uma prova do quanto sua produção intelectual apesar de apocalíptica, foi sobremaneira realista e coerente ao criticar a mutação trágica da cultura fascista em nossa sociedade.
Pasolini morreu depois de perceber que a nossa sociedade vem sendo desfigurada pelo capital, a moeda de troca para atingirmos a enaltecida e ilusória “emancipação do homem”. Morreu depois de enfatizar que nos tornamos cada dias mais escravos de uma ordinária razão técnica a serviço do capital. Por fim, morreu sentindo na pele o quanto eram duras e coerentes suas críticas. Provavelmente fechou os olhos confirmando sua descrença do mundo. 

“O espetáculo burguês consome não só a Itália, mas a humanidade inteira”, diz Pasolini


por Brunna Guimarães