Certo dia, frente a frente comigo mesma, minha futura velhice mirou-me com seus olhos angustiados através do espelho. Relato aqui algumas palavras desta nossa murmurada conversa.
Minha cara amiga Ve-lhi-ce, por que a sociedade te trata como uma espécie de segredo vergonhoso, do qual é indecente falar?
Velhice: Fale mais baixo menina. Meu nome sempre foi amortalhado por este silêncio premeditado. O homem me joga no ostracismo desde que o mundo é mundo. Se antes me tratavam como refugo, rebotalho, hoje sou vista e repelida como se doença fosse. Tratados como párias, aqueles na qual beijo são quase sempre descartados, marginalizados ou recebidos com uma indiferença de sentença. O tratamento desumano que a sociedade dá ao homem nos seus últimos anos de vida atesta o fracasso gritante de um projeto chamado civilização. Cegos pelo preconceito, não enxergam que cada um de vocês já está habitado pela futura velhice. Pelo contrário, preferem assumir a postura deplorável e ignorante de não considerar os velhos como homens. Pobres coitados, vítimas de si mesmos, esquecem que assim só cavam mais profundamente o próprio futuro desamparado e cinzento.
Para a senhora o sistema atual se preocupa com a condição dos idosos?
Velhice: O sistema só se preocupa com o indivíduo na medida em que esse rende minha filha! E também não seja inocente a ponto de acreditar que é uma preocupação verdadeira, pois não é, pelo contrário, passa muito longe disso. Esse teu mundo capitalista somente vê o homem como material para produção de lucro. Enquanto o homem está na ativa, de boca calada e condição mutilada de preferência, enchendo os cofres dos poucos privilegiados “sapatos dourados”, a coisa vai bem ao mercado. Mas, como sabemos, essa sociedade descartável e insustentável não tem o mínimo interesse em longo prazo, nem mesmo pelo homem. Assim, tudo que ultrapassa 60 anos, aquele que passou uma vida se consumindo, se torna para este mundo mesquinho somente peso e problema. Não faça esta cara de espanto, pois tu sabes que este sistema de exploração começa a aliciar a sociedade desde cedo. Ele abusa, amassa, amolda e suga toda a energia de seus homens de forma dolorosa, e quando estes, exaustos, chegam à velhice e necessitam de apoio, recebem como pagamento somente um descaso imenso.
“Aí está o crime de nossa sociedade. Sua “política de velhice” é escandalosa. Mais escandaloso ainda, porém, é o tratamento que inflige à maioria dos homens na época de sua juventude e de sua maturidade. A sociedade pré-fabrica a condição miserável que é o quinhão deles na última idade. É por culpa dela que a decadência senil começa prematuramente, que é rápida, fisicamente dolorosa, moralmente horrível porque estes indivíduos chegam a ela com as mãos vazias” (Simone Beauvoir)
A senhora acredita que a mídia reforça comportamentos de negação da velhice?
Velhice: Tão certo quanto a morte! A mídia, atendendo as necessidades viscerais do poder econômico, promove o engodo de que o homem pode ser eternamente jovem. A velhice escancara essa mentira, ela é a materialização da verdade. O sistema vem tentando inibir cada vez mais o homem de pensar em sua finitude, pois ele sabe que a consciência da morte nos permite ter outra dimensão da vida. Uma dimensão que leva o indivíduo a refletir sobre os verdadeiros valores, valores que não cifráveis, infinitamente distantes dessa identidade fabricada para consumir de forma desenfreada a tudo e a todos. A ideologia do lucro promove a desconexão do homem de si mesmo, do seu processo natural, que é nascer, envelhecer e morrer. Ao iludir o homem, disseminando esse sonho da juventude eterna, ela tiraniza a mente, insuflando e vomitando valores estéticos que se adequam somente às exigências do mercado.
Porque a velhice é vista com tanto preconceito?
A velhice é vista com horror, pois vocês são ensinados, ou melhor, domesticados a endeusar somente o que é efêmero: a beleza, a juventude, o sucesso sexual e financeiro. Iludidos, vocês renegam a realidade insistindo em se prenderem a esse Olimpo sem céu, mas o tempo passa, e as frustrações das promessas não cumpridas começam a bater nas feridas narcisistas. A maioria se sente infeliz ao se tornar velho, pois estreitaram suas almas a tal ponto de valorizarem somente o invólucro corpo. Enquanto a pele for o recheio mais almejado, enquanto vocês se reconhecerem somente em suas cascas, o sistema estará sorrindo vendendo seus vidrinhos da fonte da juventude. E como caem nesse engodo...
"A atitude dos idosos depende de sua opinião geral com relação à velhice. Eles sabem que os velhos são olhados como uma espécie inferior. Toda uma tradição carregou essa palavra de um sentido pejorativo ela soa como um insulto. Assim, quando ouvimos nos chamarem de velhas, reagimos com cólera". (Beauvoir)
Como a senhora avalia a situação dos idosos atualmente?
Velhice: A sociedade vem fechando os olhos para a condição precária dos idosos. A maioria dos velhos tem um nível de vida tão miserável que as expressões velho e pobre poderiam ser sinônimas; e a maior parte dos indigentes são velhos também! Se vocês não pararem de trapacear com vocês mesmos, não perceberem que o sentido da vida está justamente em valorizar, e não ignorar, o que vocês serão um dia, jamais irão assumir em sua totalidade a condição humana. É preciso arrancar o estereótipo da infelicidade na idade avançada. A velhice é um momento da existência diferente da juventude e da maturidade, mas possui seu próprio equilíbrio, e oferece inúmeras possibilidades. Nesse sentido, é preciso arrancar o preconceito, jogar no lixo essas ideias estabelecidas e resgatar a dignidade dos mais velhos, oferecendo a eles melhoria da qualidade de vida em todas as esferas.
“Os economistas e legisladores deploram o peso que os não-ativos representam para os ativos, como se estes últimos não fossem futuros não-ativos e não assegurassem seu próprio futuro ao instituir o amparo aos idosos” (Beauvoir)
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