sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Sentir..nada mais




Com a mente cansada de tanto estudar coisas que não alimentam o espirito, resolvi hoje botar uma camisa velha, um short deliciosamente confortável e sair a caminhar livremente sem rumo.  Como o tempo não estava muito alegre agradeci o coadjuvante mormaço pela feliz companhia.  Sai da gaiola de casa simplesmente para fugir um pouco das minhas obrigações. Livre das leis e dos códigos, alegre me estiquei procurando o sol por trás das nuvens, me contorci para escutar o barulhinho crocante de alguma vertebra voltando ao lugar, puxei minha perna para alto como uma bailarina sem potencial e de lá sai a correr para qualquer horizonte longe da esquizofrenia da vida. 

Corri como criança, sem nada e com tudo na cabeça. O vento da minha feliz velocidade refrescava minha pele, escutava eu a orquestra ritmada das cigarras, o barulho opaco dos meus pés contra o solo arranhado, e acelerava os passos só para passar zinundo pelo corpo de um caminhante solitário. Simplesmente queria suar para jogar fora as impurezas do corpo e da mente principalmente, pois o que não nos falta é muamba mental. Guardamos dentro de nós tantas miudezas desnecessárias, tantos sub-produtos que pesam nosso espirito, que acabamos mais nos arrastando pela vida do que aproveitando-a. Mas se na hora não sai para filosofar tão pouco agora o farei, a verdade é que só corria por correr, só respirava fundo feliz em respirar, só queria saber de escutar o ritmo desritmado do meu coração e de perseguir minha sombra fugidia. Corria quase voando, saltava para bater nos pequenos galhos das árvores, e fugia de tudo que não fosse o sentir simplesmente. Parei naquele pontos de ginasticas entre quadras mas na primeira abdominal me deixei deitar complemente e com vontade para observar o movimento das folhas verdes contra o reflexo do sol lá perto do céu.  Fiquei hipnotizada com esta dança e com o farfalhar da natureza por um bom tempo. E foi justamente neste momento que me bateu uma vontade estranha de sentir a terra beijar meu corpo todo. Sim, há tempos não deitava na terra, há séculos não me encostava toda ao planeta. 

Levantei-me e assim sai a procurar de um pedaço de pele da terra para abraçar. Cheguei a um descampado verde imenso, iluminado e um tanto solitário. De início olhei para os lados meio envergonhada desse ato que deveria ser tão natural, mas sem pensar joguei fora estes resquícios de etiqueta e me estirei com gosto na grama. De costas senti a terra pinicar levemente meu espirito, esquentar meu corpo, molhar meus dedos de orvalho e me envolver por inteiro em teu ser. Olhava para o céu, agora já aberto e plenamente azul e sentia um frio na barriga como se estivesse na pontinha de uma espaçonave a viajar pelo universo a velocidade da luz. Ria sozinha das sensações infantis, mas cada vez mais me sentia bem simplesmente por estar ali e existir por existir. Fechei os olhos sonhando com meus sonhos e lá me quedei por um eterno tempo. 

Só sai do meu estado alfa quando senti uma sombra sobre mim, abri os olhos e vi derrepente um homem me olhando lá do alto. Me sentei num instante e esperei o bendito importunante dizer o queria. Medo não fiquei pois via ao longe a presença humana reconfortante. Ele me perguntou com uma voz meio abafada “Você está bem?”. Claro..lá vinha mais um ser engaiolado pela normalidade, preso nas teias deste mundo tão “civilizado”, preocupado com minha suspeita atitude naturalista, pensei. Respondi meio sem jeito que sim, “estava descansando um pouco, olhando a beleza do céu..” disse. 

Já ia me levantar para ir embora mas foi nesse momento que meu dia se iluminou por completo, o homem sem nome, já quase um senhor, falou rápido “posso te acompanhar na contemplação do mundo?” Nossa me engasguei...olhei para ele para ver se percebia algum tipo de maldade, mas em seus olhos só havia alma e seu sorriso transmitia calma. Ele sentou como um ancião e não perguntou nem o meu nome, simplesmente aguardou minha “permissão” para deitar ao meu lado na nave gaia. Joguei pro alto minha desconfiança e disse sorrindo que sim, que seria uma honra ele ser meu copiloto. Juro que ele pareceu me entender, e assim dois estranhos se deitaram sobre a terra. 

Confesso que fiquei fascinada com o momento..

O silencio apaziguador nos tomava conta, um avião passou e o seguimos, os pássaros que cantavam cantavam para gente, as nuvens brancas e carregadas voavam para chover ao longe, as cigarras distantes procuravam um par, um casal de namorados passou próximo da gente rindo do estranho par, somente uma eternidade depois começamos a conversar. Mas não vou relatar aqui as coisas na qual falamos, pois para mim o mais fantástico foi percorrer um pouco esse universo mágico com um estranho ao meu lado.

E que seja perdido o único dia em que não se dançou..!

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Diálogo com a Velhice




Certo dia, frente a frente comigo mesma, minha futura velhice mirou-me com seus olhos angustiados através do espelho. Relato aqui algumas palavras desta nossa murmurada conversa.

 Minha cara amiga Ve-lhi-ce, por que a sociedade te trata como uma espécie de segredo vergonhoso, do qual é indecente falar?

Velhice: Fale mais baixo menina. Meu nome sempre foi amortalhado por este silêncio premeditado. O homem me joga no ostracismo desde que o mundo é mundo. Se antes me tratavam como refugo, rebotalho, hoje sou vista e repelida como se doença fosse. Tratados como párias, aqueles na qual beijo são quase sempre descartados, marginalizados ou recebidos com uma indiferença de sentença. O tratamento desumano que a sociedade dá ao homem nos seus últimos anos de vida atesta o fracasso gritante de um projeto chamado civilização. Cegos pelo preconceito, não enxergam que cada um de vocês já está habitado pela futura velhice. Pelo contrário, preferem assumir a postura deplorável e ignorante de não considerar os velhos como homens. Pobres coitados, vítimas de si mesmos, esquecem que assim só cavam mais profundamente o próprio futuro desamparado e cinzento.

Para a senhora o sistema atual se preocupa com a condição dos idosos?

 Velhice: O sistema só se preocupa com o indivíduo na medida em que esse rende minha filha! E também não seja inocente a ponto de acreditar que é uma preocupação verdadeira, pois não é, pelo contrário, passa muito longe disso. Esse teu mundo capitalista somente vê o homem como material para produção de lucro. Enquanto o homem está na ativa, de boca calada e condição mutilada de preferência, enchendo os cofres dos poucos privilegiados “sapatos dourados”, a coisa vai bem ao mercado. Mas, como sabemos, essa sociedade descartável e insustentável não tem o mínimo interesse em longo prazo, nem mesmo pelo homem.  Assim, tudo que ultrapassa 60 anos, aquele que passou uma vida se consumindo, se torna para este mundo mesquinho somente peso e problema. Não faça esta cara de espanto, pois tu sabes que este sistema de exploração começa a aliciar a sociedade desde cedo. Ele abusa, amassa, amolda e suga toda a energia de seus homens de forma dolorosa, e quando estes, exaustos, chegam à velhice e necessitam de apoio, recebem como pagamento somente um descaso imenso.

“Aí está o crime de nossa sociedade. Sua “política de velhice” é escandalosa. Mais escandaloso ainda, porém, é o tratamento que inflige à maioria dos homens na época de sua juventude e de sua maturidade. A sociedade pré-fabrica a condição miserável que é o quinhão deles na última idade. É por culpa dela que a decadência senil começa prematuramente, que é rápida, fisicamente dolorosa, moralmente horrível porque estes indivíduos chegam a ela com as mãos vazias” (Simone Beauvoir)

A senhora acredita que a mídia reforça comportamentos de negação da velhice?

Velhice: Tão certo quanto a morte! A mídia, atendendo as necessidades viscerais do poder econômico, promove o engodo de que o homem pode ser eternamente jovem. A velhice escancara essa mentira, ela é a materialização da verdade. O sistema vem tentando inibir cada vez mais o homem de pensar em sua finitude, pois ele sabe que a consciência da morte nos permite ter outra dimensão da vida. Uma dimensão que leva o indivíduo a refletir sobre os verdadeiros valores, valores que não cifráveis, infinitamente distantes dessa identidade fabricada para consumir de forma desenfreada a tudo e a todos. A ideologia do lucro promove a desconexão do homem de si mesmo, do seu processo natural, que é nascer, envelhecer e morrer. Ao iludir o homem, disseminando esse sonho da juventude eterna, ela tiraniza a mente, insuflando e vomitando valores estéticos que se adequam somente às exigências do mercado.

Porque a velhice é vista com tanto preconceito?

A velhice é vista com horror, pois vocês são ensinados, ou melhor, domesticados a endeusar somente o que é efêmero: a beleza, a juventude, o sucesso sexual e financeiro. Iludidos, vocês renegam a realidade insistindo em se prenderem a esse Olimpo sem céu, mas o tempo passa, e as frustrações das promessas não cumpridas começam a bater nas feridas narcisistas. A maioria se sente infeliz ao se tornar velho, pois estreitaram suas almas a tal ponto de valorizarem somente o invólucro corpo. Enquanto a pele for o recheio mais almejado, enquanto vocês se reconhecerem somente em suas cascas, o sistema estará sorrindo vendendo seus vidrinhos da fonte da juventude. E como caem nesse engodo...

"A atitude dos idosos depende de sua opinião geral com relação à velhice. Eles sabem que os velhos são olhados como uma espécie inferior. Toda uma tradição carregou essa palavra de um sentido pejorativo ela soa como um insulto. Assim, quando ouvimos nos chamarem de velhas, reagimos com cólera". (Beauvoir)

Como a senhora avalia a situação dos idosos atualmente?

Velhice: A sociedade vem fechando os olhos para a condição precária dos idosos. A maioria dos velhos tem um nível de vida tão miserável que as expressões velho e pobre poderiam ser sinônimas; e a maior parte dos indigentes são velhos também! Se vocês não pararem de trapacear com vocês mesmos, não perceberem que o sentido da vida está justamente em valorizar, e não ignorar, o que vocês serão um dia, jamais irão assumir em sua totalidade a condição humana. É preciso arrancar o estereótipo da infelicidade na idade avançada. A velhice é um momento da existência diferente da juventude e da maturidade, mas possui seu próprio equilíbrio, e oferece inúmeras possibilidades. Nesse sentido, é preciso arrancar o preconceito, jogar no lixo essas ideias estabelecidas e resgatar a dignidade dos mais velhos, oferecendo a eles melhoria da qualidade de vida em todas as esferas.

“Os economistas e legisladores deploram o peso que os não-ativos representam para os ativos, como se estes últimos não fossem futuros não-ativos e não assegurassem seu próprio futuro ao instituir o amparo aos idosos” (Beauvoir)



B.G