Do sofá puído de casa acompanho com tristeza a rotina do meu pássaro
engaiolado. Sim, este tem asas, mas não voa, tem as cores da liberdade,
mas jamais sentiu realmente o que é isso. Este pequeno ser tornou-se meu
prisioneiro devido a uma infeliz ideia que tive no passado de ter um
pássaro que pudesse viver “solto” em casa. Condeno-me amargamente por
este tolo pensamento de acreditar que ele seria feliz vivendo uma
pseudo-liberdade na grande e claustrofóbica gaiola-mor, minha casa. Ao
escrever estes devaneios me sinto presa a um infeliz dilema, se liberto o
condeno a morte, já que ele foi completamente condicionado e
domesticado a comer o que lhe põem na tigela, seu voar tornou-se meros
saltos de quinze centímetros e seu mundo um poleiro somente.
Como soltá-lo e perdoar meu infeliz coração quando ele não mais sabe o
que é ser um pássaro? Será que ele sabe que solto pode tocar o azul do
céu, que liberto pode se banquetear com centenas de frutas deliciosas,
que pode bebericar da água mais cristalina, que livre da gaiola pode
viver as aventuras do perigo que espreita, mas ensina, que longe das
minhas garras que o aprisionam pode quem sabe um dia dançar um ritual
lindíssimo ao encontrar sua amada e criar filhotes cheios de vigor em
plena luz?
Depois de tantos anos preso, vivendo do farelo que oferecemos,
acreditando que essa pálida sobrevida, é a vida realmente, creio que meu
pássaro já não pode ser mais um pássaro verdadeiramente. Culpa minha.
Fiquei ruminando minha infeliz escolha e suas consequências por um longo
tempo e foi pensando nisso, que acidentalmente refleti um pouco sobre a
condição do homem contemporâneo.
Sim, sinto que muito do homem moderno se assemelha a este meu triste
pássaro apenado. Preso em gaiolas mercantis de diferentes tipos e
tamanhos acreditamos ilusoriamente que seremos mais livres e felizes ao
termos dinheiro, fama e poder, quando na verdade, só nos afundando cada
vez mais na gaiola dourada do sistema. Hoje o homem vive aprisionado em
uma gaiola tão vasta e tão confortável que não mais enxerga o horizonte
da sua real pátria.
O homem nasceu para se livre, mas são poucos os que sabem
verdadeiramente o que significa isso. Pelo contrário, o homem vem
perdendo sua essência, seus gostos e valores em nome de uma marca, uma
estampa, uma compra, um gozo vazio. Estamos vivendo a mercê de
espetáculos que nos representam para nós mesmos. Já não sabemos quem
mais somos, aguardamos a mídia e o mercado dizerem. Vivemos um teatro na
qual cada um tem seu papel previamente decidido. Por meio da coação
psicológica o sistema vem tentando, com sucesso, controlar muito de
nossos anseios e formatar nossos ideais de felicidade. Não tem como não
perceber a constante e maquiavélica tentativa do sistema de equalizar
cada vez mais nossos valores e atitudes, por intermédio da manipulação
do imaginário. O que os Sapatos dourados querem é anestesiar a
criatividade do imaginário e nivelar radicalmente todos os valores,
introjetando e naturalizando assim a cultura do capital. Hoje
acreditamos fazer uso do dinheiro, mas a verdade é que ele nos controla
cada vez mais. O sistema grita: não existe felicidade sem o verbo TER, e
como acreditamos. O sistema impõe um ideal de beleza e lá vamos nós nos
sentido pálidos perto daqueles manequins de novela. Escravos do nosso
próprio corpo, nossa mente absorve valores narcisistas, consumistas e
individualistas que o mercado regurgita a todo o momento. E assim nossa
alma vai se estreitando a tal ponto de nos tornarmos mais pele que
espírito.
Hoje o sistema vende em pedaços o paraíso prometido, cada bago uma
soma de ilusão, e sem perceber vamos engolindo languidamente dezenas de
valores morais e padrões culturais de um grupo dominante. Como o meu
pássaro, me pergunto se o homem engaiolado sabe o que existe do outro
lado das grades? Será que ele sabe que quebrando suas correntes existe
um mundo lá fora onde os homens podem ser todos irmãos? Que arrancando
as algemas desse sistema egoísta é possível viver plenamente sabendo que
o certo é o caráter de uma pessoa valer mais do que as notas verdes do
bolso, que o certo é não permitir que a maioria seja condenada para que
uma minoria ordinária possa viver bem? Que o planeta tem comida e água
abundante para todos se dividido igualmente? Que sentir a natureza
verdadeiramente vale mais do que toda esta parafernália de produtos que
consome nossos dias e nos fazem perder um tempo real e precioso na
terra? Não sei..não sei, poucos são aqueles que tem interesse de
libertar seu espirito e mais raro ainda são aqueles que conseguem
arrebentar a gaiola invisível que os cercam.
A maior cartada do sistema é nos fazer crer que já somos livres
quando mais presos ficamos. Se o sistema nos dá algum tipo de liberdade é
somente a “liberdade” de podermos escolher nossas próprias gaiolas
menores para pacificamente e alienadamente vivermos nesse reino que só
encanta mais jamais satisfaz. Um pássaro de cativeiro, se liberto,
dificilmente voltará a se lembrar para que nasceu, mas o homem de fé
pode. No mais peço desculpas a você meu querido pássaro. Lhe prometo que
jamais irei aprisionar em toda minha vida mais um ser vivente.
Carregarei você comigo como uma penitência pelo pecado que cometi.
por Brunna Guimarães, jornalista e estudante de filosofia para O MIRACULOSO