“Dize
à minha alma: Eu sou a tua salvação. Dize de forma que eu te escute. Os ouvidos
do meu coração estão diante de tu, Senhor; abre-os e dize à minha alma: Eu sou
a tua salvação. Correrei atrás destas palavras e te segurarei”.
A
obra de Santo Agostinho propõe articular que a ideia de Deus, um Ser pleno,
perfeito e absoluto, é uma verdade e um conhecimento universal intrinsecamente ligado
ao espírito humano. Em seu livro “As Confissões”, escrito aproximadamente entre
anos 397/398, Agostinho, além de fazer um relato da própria vida à luz da sua
conversão, de maneira fervorosa e poética louva e clama a Deus, para que este,
Senhor da Verdade, ilumine seu espírito com a revelação. Para o teólogo a alma
do homem seria a “estreita morada para receber a Deus”, e só pela graça divina
esta pode ser dilatada, purificada e
preenchida com a paz iluminadora.
Para
Agostinho, “Deus arrancou-se de onde nunca se retirou”, ou seja, ele afirma que
o conhecimento de Deus está naturalmente presente no coração do homem, e todo
ser racional pode, por meio da vontade plena, reconhecer o universo como
criação Deste. De acordo com ele, a fonte da verdade gera, por assim dizer, uma
espécie de apelo que nos faz buscar a lembrança de Deus em nosso interior. E
por maior que seja nossa limitada razão que não consegue abarcar, e jamais conhecerá a Deus tal como
ele é, o homem deve reconhecer e amar a
Deus sob todas as coisas, pois só assim a alma, sabendo o que ela é, viverá de
acordo com sua verdadeira natureza – inteligível, sagrada e eterna.
“É,
portanto a alma inteira que deve amar aquilo que somente o pensamento pode
contemplar e é pelo amor assim esclarecido pela razão que a alma atingirá
finalmente sua meta; não somente conhecer seu fim, mas, em certo sentido,
sê-lo. É com efeito, próprio do amor que o objeto amado reaja, na alma, de
alguma maneira sobre isso que ele ama para transformá-lo em sua imagem e
assimilá-lo. Amar o material e o perecível é materializar-se e condenar-se a
perecer; amar o eterno é, ao contrário, eternizar-se; amar Deus é tornar-se
ele” (Trindade, XI).
Em
sua obra, Santo Agostinho não apenas disserta com profundidade sobre como a fé
é via de acesso à verdade eterna, como também visiona a sabedoria como ideal da
verdade para que o homem desfrute e conheça a si mesmo e a realidade como um
todo, a partir de Deus, como criador. Ou seja, a noção de sabedoria é um dos
pontos centrais da filosofia agostiniana, e coloca o pressuposto que “todo
conhecimento verdadeiro é resultado de um processo de iluminação divina, que
possibilita ao homem contemplar as ideias, e arquétipos eternos do mundo”.
(Étienne Gilson, Introdução ao estudo de Santo Agostinho).
A
amplitude de sua reflexão abrangia tantas questões filosóficas e morais, entre
elas, sobre a Criação, identidade do Ser, tempo e finitude, a graça e
predestinação, vontade humana e livre arbítrio, existência do bem e do mal, ética
e justiça, que Agostinho, é considerado o precursor da ligação entre a
filosofia e o cristianismo. O pensamento de Agostinho é um importante eixo na
orientação da visão do homem medieval sobre a relação entre a fé cristã e o
estudo da natureza.
Por
mais que ele reconheça a importância do conhecimento e da razão, tendo em vista
a busca pela felicidade intrínseca do ser, Agostinho em sua obra, não concebe a
felicidade como possível separada da Verdade, ou seja, para abranger a plena
sabedoria e beatitude é preciso ter a posse da verdade absoluta, na qual é o conhecimento
de Deus como o Criador do universo e Bem supremo.
Segundo
este grande teólogo existe uma luz eterna da razão que procede de Deus e atua a
todo o momento possibilitando o conhecimento das verdades eternas. Nesse
sentido, fazendo uma bela comparação, Agostinho propõe que se para ver além do
olho e da coisa, é necessária a luz física, do mesmo modo, para o conhecimento
intelectual é necessário uma luz espiritual.
“Assim
como os objetos exteriores só podem ser vistos quando iluminados pela luz do
sol, também as verdades da sabedoria precisam ser iluminadas pela luz divina
para se tornarem inteligíveis”. (Confissões, Livro III).
Contudo,
ele pontua também que a iluminação divina, não dispensa o indivíduo de ter um
intelecto próprio, ou seja, a iluminação incide sobre o intelecto com o intuito
de direcioná-lo ao caminho do bem, porém todo o percurso a ser trilhado deve
ser feito pela vontade do homem, de pensar e agir em virtude de uma ordem
natural provinda de Deus.
A fé, de acordo com ele, não diminui em nada a
penosa força dos argumentos racionais, usados para demonstrar a existência de
Deus e seus indícios, pelo contrário, ela o ajuda a descobrir mais claramente a
racionalidade neles.
Agostinho
entende que é a fé em Cristo que restaura a condição decaída da razão humana, é
o conhecimento e aceitação de Deus como bem supremo que sana a alma das suas
deficiências e corrige a razão para melhor orientá-la à solidez da Verdade.
Para o teólogo a alma do homem é livre para
escolher qual caminho seguir, porém Agostinho afirma que muitas vezes o homem
faz mau uso do livre arbítrio, e inverte a transcendência hierárquica da alma
sobre o corpo, e assim voltada e aliciada pela matéria, esta acaba por sucumbir
ao contato com o sensível, e aos poucos vai “esvaindo-se no não-ser e considerando-se
a si mesma como um corpo”.
De
acordo com Agostinho a alma que peregrina por muito tempo longe da luz, distante
de Deus, corre um sério risco de torna-se cega. Seguindo esta linha de
pensamento, é como se a alma, fosse - por vontade própria - na contramão de
Deus, na direção das coisas terrenas, carnais e sensíveis, assim esta vai se
dissipando e se reduzindo ao nada, na medida em que se afasta da unidade divina
para se entregar a “inúmeras bagatelas”.
Em
diversos momentos Agostinho pontua que a vontade do homem é essencialmente
criadora e livre, e nela tem raízes a possibilidade de o homem afastar-se de
Deus. “Tal afastamento significa, porém, distanciar-se do ser e caminhar para o
não-ser, isto é, aproximar-se do mal”.
Agostinho
acredita que sem o auxilio da graça divina, o livre-arbítrio tende a eleger o
mal e viver sob a defeituosa sombra da formosura dos vícios. Isso ocorre, pois
o homem é um ser limitado, e pode agir desordenadamente e imoralmente contra os
desígnios de Deus. Deve-se considerar, contudo, que esta ação não é causa
eficiente, mas deficiente, pois é uma ação em direção ao “não-ser”, ao mal, contra
a natureza do Ser, que é Deus.
Porquanto
o mal não tem realidade metafísica e segundo o pensador só pode unicamente
provir do homem, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz
unicamente o ser, ou seja, o Bem.
O
pecado, nesse sentido, só pode prejudicar a criatura sob a pena da desordem, que,
não podendo lesar a Deus, prejudica somente a si mesma, determinando a
dilaceração da sua própria natureza.
Assim,
verdadeiro mal, princípio dos outros males é o pecado que consiste na ausência
do amor de Deus. Somente por meio da graça, é que a alma dirige-se para o bem
eterno. Caso um novo desejo e novas graças não surjam para mais uma vez
elevarem a alma do homem até Deus, esta cairá de vez na concupiscência e na
ignorância.
Mas
é justamente esta batalha da alma contra as paixões e seduções dos vícios
terrenos que nos aproxima muito de Santo Agostinho, pois ele em toda sua obra,
com foco nas “Confissões”, nos revela intimamente sua torturante luta interior
antes de encontrar o altar da fé. A alma
de Agostinho sofria das mesmas paixões, das mesmas angustias e dúvidas que
geralmente borbulham no espirito humano.
“O
inimigo dominava meu querer, e dele forjava uma cadeia com que me apertava.
Ora, a luxúria provém da vontade perversa; enquanto se serve à luxúria,
contrai-se o hábito; e se não se resiste a um hábito, origina-se uma
necessidade. Era assim que por uma espécie de anéis entrelaçados – por isso
lhes chamei cadeia –, me segurava apertado em dura escravidão. A vontade nova,
que começava a existir em mim, a vontade de Vos honrar gratuitamente e de
querer gozar de Vós, ó meu Deus, único contentamento seguro, ainda se não
achava apta para superar a outra vontade, fortificada pela concupiscência.
Assim, duas vontades, uma concupiscente, outra dominada, uma carnal, outra
espiritual, batalhavam mutuamente em mim. Discordando, dilacerava-me a alma”
(Confissões, Agostinho. 2000:209)
Segundo
ele, que suspirava e suava pela verdade com cada fibra de seu ser, o coração do
homem vive inquieto enquanto não repousa nos braços da verdade suprema; e para
alcançar tal plenitude o homem precisa reeducar sua vontade para voltar ao seu
lugar de origem natural, a sua pátria.
O
indivíduo precisa, portanto, buscar a graça de Deus com humildade e pedir para
recebê-la. “Aceitá-la é a verdadeira
maneira de conquistá-la”. Quando Agostinho diz isto, mais uma vez afirma que a
salvação mais se encontra no espaço espiritual interno, do que externo, pois na
medida em que reconhece Deus dentro de si, o ser é tocado pelas mãos da Verdade
eterna.
Mas
atingir esta beatitude não é nada fácil, pelo contrário, poucos conseguem
aderir à solidez da Verdade, pois, segundo Agostinho, a maioria prefere “roçar
miseravelmente aos objetos sensíveis” a ponto de não distinguir mais o que é o amor
sereno do prazer tenebroso ou mesmo até muitos sentem os indícios de Deus no
mundo, porém estando de costas voltadas para a luz e com a face erguida para os
objetos iluminados, só conseguem vislumbrar a beatitude, pois o rosto com que
vê os objetos divinos não é realmente iluminado, já que não está voltado na
direção de Deus.
Nesse
sentido, para abarcar a sabedoria plena, que é Verdade pura e absoluta é
preciso que a graça divina floresça no interior do ser e assim tocado pelo
divino, o coração carregado de vontade busque se distanciar cada vez mais das
coisas terrenas e finitas para clamar e louvar por Deus, criador do bem, do universo
e infinitamente presente em cada partícula do tempo e do espaço.
“Para
lá chegar não se vai de navio, de carro ou a pé, nem sequer para andar o
caminho que tinha percorrido desde a casa ao lugar onde estava sentando. Com
efeito, não só o ir ao céu, mas também o atingi-lo não são mais que o querer
ir, mas um querer forte e total, não
uma vontade tíbia que anda e desanda daqui para ali, que luta consigo mesma,
erguendo-se num lado e caindo no outro”. (Confissões, livro XIII)
Desta
forma, quando o homem está disposto, aberto e entregue para receber humildemente
a luz do conhecimento da existência de Deus, este dependendo da graça, recebe a
Verdade, tendo suas fraquezas curadas, suas frouxidões reformadas e tua
podridão reflorescida no campo fértil de Deus.
Agostinho
no trecho que segue descreve justamente sobre esta purificação do homem, quando
é permitido por Deus que o corpo carregado de pecados se transforme em alma sem
iniquidades. “Não escondas de mim a tua face: que eu morra para contemplá-la e
para não morrer! Minha alma é morada muito estreita para te receber: será
alargada por ti, Senhor. Estás em ruínas: restaura-a! Tem coisas que ofendem
aos teus olhos: eu o seu e confesso . Mas quem pode purificá-la? A quem, senão
a ti, eu clamarei: Purifica-me, Senhor, dos pecados ocultos, e perdoa a teu
servo as culpas alheias? Creio, e por isso falo, Senhor: tu o sabes. Não te
confessei contra mim as minhas faltas, meu Deus, e não perdoaste a maldade do
meu coração? Não discuto contigo, que és a verdade, e não quero enganar a mim
mesmo, para que a minha iniqüidade não minta a si mesmo. Não discuto contigo
porque, se te lembrares de nossos pecados, Senhor, quem suportará teu olhar?”
(Confissões, 2000).
O filósofo descreve em sua obra belas metáforas
para purificação a alma, entre elas, afirma que o primeiro grau de cura da alma
é remover a flecha que causa incômodo, ou seja, fazer a remissão dos pecados. O
segundo grau será curar o próprio ferimento, o que se faz lentamente com o
progresso realizado na renovação da imagem interior.
Aliás, a descoberta do homem interior é o
alicerce de toda a obra Agostiniana.
Agostinho afirma que o homem que vive apenas das coisas exteriores,
esvazia-se de si mesmo, mas quando interioriza, quando entra em si mesmo,
quando se recolhe e penetra precisamente naquilo que é o homem interior, o
mundo interior, é justamente ai que se encontra Deus.
Para Agostinho é preciso levar a sério que o
homem é a imagem e semelhança de Deus, sendo que, o primeiro passo para encontrar
a Verdade é a busca da sua imagem dentro de si, sua natureza divina dentro da
intimidade do homem. “Os homens saem para fazer turismo, para admirar o pico
das montanhas, o marulho das ondas dos mares, o fácil e copioso curso dos rios,
as revoluções e giros dos astros. Entretanto, não olham para si mesmos”
(Agostinho)
O filósofo de Hipona afirma ao longo de toda
a sua obra que só podemos amar a Deus, quando a alma recorda, compreende e ama
aquele por quem foi criada. O pesquisador Evilázio Francisco Borges Teixeira,
em seu livro ‘Imago trinitatis’ contempla essa visão Agostiniana sobre
importância da interioridade.
“Embora invisível, a missão divina é uma
presença que se manifesta. Somente que esta manifestação é puramente interior
que se produz no interior da alma, quando esta se recolhe para se ver como
imagem e elevar-se à contemplação do Verbo. A alma experimenta, então, em si
mesma, a presença do Verbo-Sabedoria” (Evilázio Borges, Imago Trinitates, 2003)
Nas confissões de Santo Agostinho fica claro
que para encontrar a Verdade iluminadora é preciso fazer uma intensa incursão
dentro de si mesmo, pois segundo ele andar por dentro é desejar as coisas de
dentro, já andar por fora é desprezar as coisas de dentro e encher-se das de
fora. “O orgulhoso lança fora o que tem dentro; o humilde o busca com afã. A
soberba exila o homem de si mesmo; a humildade o devolve à sua intimidade”.
Finalizo
com um trecho de Agostinho, na qual ele descreve efusivamente seu encontro com
Deus, que de dentro para fora o iluminou e rompeu a nódoa da sua alma antes
cética e irrequieta.
“Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão
nova. Tarde Vos amei! Eis que Habitáveis dentro de mim, e eu, lá fora, a
procurar-Vos! Disforme, lançava-me
sobre estas formosuras que criastes. Estáveis
comigo e eu não estava Convosco! Retinha-me longe de Vós aquilo que não
existiria, se não existisse em Vós. Porém, chamastes-me, com uma Voz tão forte,
que rompestes a minha surdez! Brilhastes, cintilastes, e logo afugentastes a
minha cegueira!
Exalastes Perfume: respirei-o, a plenos
pulmões, suspirando por Vós. Saboreei-Vos e, agora, tenho fome e sede de Vós.
Tocastes-me e ardi no desejo da Vossa Paz”
- Com o Coração se pede. Com o Coração se
procura. Com o Coração se bate. E é com o Coração que a Porta se abre.
B.G
B.G
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