Na medida em que a razão
instrumentaliza-se o homem pós-moderno vem sendo expropriado de si mesmo. Creio
que podemos inferir no trecho do filósofo alemão Robert Kurz, justamente sobre a
perda da identidade do indivíduo contemporâneo, que “se vê completamente
anulado em face dos poderes econômicos”. (Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento,
tradução de Guido Almeida, Jorge Zahar, 1985, pág. 14).
Não tenho dúvidas que o esclarecimento e
a “luz” da razão trouxeram inúmeros benefícios para a sociedade, porém devemos
nos perguntar a que preço, pois se formos colocar na balança, diria que nada é
mais valioso que a nossa subjetividade, pois esta é o alicerce, é a alma do Homem.
E infelizmente, em nossa sociedade desfigurada pelo capital, a moeda de troca
para atingirmos a enaltecida “emancipação do homem” é nos tornar escravos da
razão técnica a serviço do capital.
Antes de me debruçar um pouco mais sobre
a perda da nossa identidade autônoma para o mercado, devo dizer que fiquei
instigada com o texto de Robert Kurz, pois não havia pensado com profundidade
ainda (se é que agora penso, sic), no quanto esse mesmo sistema tirano que
subjuga os colonizados ou operários modernos, que sustentam o capital, também algema
de alguma forma os “supostos senhores desse modo de produção”.
A lógica do capital vem se tornando tão
autossuficiente e tirana que os próprios senhores vêm sendo paulatinamente consumidos
pelo ideal racional mercantil que eles - homens esclarecidos - criaram. Os
filósofos Adorno e Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento estudaram
exatamente como esta máquina capitalista vem mutilando até mesmo os senhores
que dela se alimentam.
A razão mercantilista e instrumental vem
fugindo de si mesma, esvaindo-se da sua essência e autoconsciência de tal
maneira que força Horkheimer admitir que
a “máquina expeliu o maquinista; e está correndo cegamente no espaço”. Sem controle
esta vem desvirtuando o sentido perene da razão e sendo alimentada pelo signo
da irracionalidade. Essa barbárie moderna foi construída em cima de uma
razão plastificada e dominadora que se amolda perfeitamente hoje aos interesses
da lógica sombria e desumana do capital
“Sua necessidade não é menos aparente do
que a liberdade dos empresários, que acaba por revelar sua natureza compulsiva
nas lutas e acordos a que não conseguem escapar. Essa aparência, na qual se
perde a humanidade inteiramente esclarecida, não pode ser dissipada pelo
pensamento que tem de escolher, enquanto órgão da dominação, entre o comando e
a obediência. Incapaz de escapar ao envolvimento que o mantém preso à
pré-história, ele consegue no entanto reconhecer na lógica da alternativa, da
consequência e da antinomia, com a qual se emancipou radicalmente da natureza,
a própria natureza, irreconciliada e alienada de si mesma” (Adorno e
Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, Excurso I, tradução de Guido Almeida,
Jorge Zahar, 1985, pág. 49)
Estes pensadores aprofundam a reflexão
afirmando que os senhores do esclarecimento tendem a confundir liberdade com a
busca da autoconservação. Ou seja, eles acreditam ser livres porque dominam e
colonizam o mundo, porém nada mais são do que objetos da própria razão
dominadora que criaram, são instrumentos da mesma natureza das quais dominam. A
grande diferença entre estes e a massa operária do sistema, é que têm a alternativa
de escolherem se querem estar no comando ou serem obedientes servos nas mãos de
outros senhorios, também presos pela própria forca que inventaram.
Fora este pequeno farelo de liberdade, o
burguês esclarecido, o neocolonizador, o homem branco engravatado, se vê refém
da mesma violência que modela a sociedade industrial, a diferença é que este
come caviar, numa imensa gaiola dourada, mas ainda sim continua aprisionado. A
verdade é que a natureza dominadora instalou-se nos homens, e independente das
classes, esta formata e ajusta a sociedade como um todo para se adaptar a razão
instrumental.
E assim voltamos a cerne da questão
abordada por Robert Kurz. Aqueles senhores
que desejam se conservar no comando, para se auto conservarem e legitimarem a
dominação coadjuvante que causam, precisam ser ajustados em sua interioridade
para se adequarem a lógica da funcionalidade imposta pelo sistema.
E é nesse processo, que a subjetividade
do ser, vem sendo esvaziada e coisificada para responder aos interesses da
razão técnica. Esta razão nada ética ou justa está a serviço de um sistema neoliberal
que mastiga e retalha o homem a seu bel-prazer para logo em seguida cuspi-lo fragmentado
e reformulado, com uma nova identidade.
Este processo é observado por Adorno e
Horkheimer, que percebem que tanto o indivíduo na Grécia Antiga quanto homem
contemporâneo com a promessa de obter o esclarecimento, com o fim de “livrar os
homens do medo e de investi-los na posição de senhores”, e “dissolver os mitos
e substituir a imaginação pelo saber”, acaba por se sacrificar para se autoconservar.
Mas é bom lembrar que esta renuncia e sacrifício são rigorosamente calculadas
para garantir ao herói antigo e ao burgues sua proteção, “retorno à pátria e
aos bens sólidos”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 56).
No excurso I, Adorno e Horkheimer
continuam sua reflexão sobre a necessidade de sacrifica-se para dominar a
natureza e os próprios homens. “Na história das classes, a hostilidade do eu ao
sacrifício incluía um sacrifício do eu, porque seu preço era a negação da
natureza no homem, em vista da dominação sobre a natureza extra-humana e sobre
os outros homens. [Com isso], não apenas o telos da dominação externa da
natureza, mas também o telos da própria vida se torna confuso e opaco” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1991, p. 60)
Este trecho da dialética casa
perfeitamente com o pensamento de Robert Kurz, afinal ele diz que o próprio
vencedor e conquistador deve também destruir a sua capacidade sensível de
fruição, ou seja, sacrificar-se. “Quanto mais avançava na colonização do mundo
exterior, tanto mais o homem branco precisava ajustar a si mesmo, e quanto mais
assim se ajustava, mais precisava colonizar o mundo”. (Robert Kurz, Supressão e
conservação do homem branco).
O
sacrifício do próprio individuo para dominar a natureza e realizar suas
vontades “esclarecedoras”, converte-se em dominação com o fim último do lucro,
seja no passado longínquo ou na atualidade. Ao analisar exaustivamente a
antiguidade e as peripécias de Ulisses na Odisséia, Adorno e Horkheimer traçam
um paralelo para entender como “a humanidade, em vez de entrar em um estado
verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 11).
Esta barbárie se configura devido o
grande distanciamento da moralidade com esclarecimento, que transformando o potencial
do progresso em anti-razão, acaba por fazer outra relação, progresso com
violência e crueldade como pulsão para satisfazer necessidades inconscientes do
ser. Com isso mais uma vez retomamos ao mito, ao mundo primitivo.
“A anti-razão do capitalismo
totalitário, cuja técnica de satisfazer as necessidades, em sua forma
objetualizada, determinada pela dominação, torna impossível a satisfação das
necessidades e impele ao extermínio dos homens – essa anti-razão está
desenvolvida de maneira prototípica no herói homérico que se furta ao
sacrifício sacrificando-se. A história da civilização é a história da
introversão do sacrifício. Ou por outra, a história da renúncia. (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 61)
Esta dominação neurótica e as avessas se
tornou tão poderosa e necessária para sujeitar a natureza exterior, humana ou
não-humana, que o sujeito precisou subjugar a natureza dentro de si mesmo.
Assim o homem contemporâneo vem tendo sua identidade retificada para se adequar
aos valores vigentes do sistema capitalista. Nesta era tecnocrática e
economicista, o individuo vem sendo abstraído e ajustado aos poucos para se
transformar em mero instrumento de produtividade.
Isso o ocorre, pois para o individuo se auto
preservar, o sistema impõe que ele se ajuste às exigências de preservação da
lógica do capital. E aqueles que se recusam a aceitar esta ordem do império
neoliberal são cruelmente excluídos pelas classes dirigentes que constroem
justamente estes valores a serem introjetados e seguidos.
Finalizo a questão com uma frase de
Horkheimer que depois de muito analisar o passado explicita a importância dos
homens contemporâneos se perceberem como a própria causa da enfermidade da
humanidade, mas também a própria cura. “Até época bem recente na história
ocidental, faltavam à sociedade suficientes recursos culturais e tecnológicos
para gerar uma compreensão entre indivíduos, grupos e nações. Hoje, as
condições materiais existem. O que está faltando são homens que compreendam que
são eles mesmos as vítimas ou os executores da própria opressão”.
Como o próprio Robert Kurz pontua, o
homem branco, fustigado por essa coerção cega e auto-imputada, por muito tempo
conduziu seu império mundial com a crueldade inerente às relações coercitivas
inconscientes. O que é preciso reconciliar, portanto é a sensibilidade com a
razão, só assim caminharemos para o ideal luminoso e construtivo do
esclarecimento pacifico. A loucura do passado e caos do presente nos ensina, ou
melhor nos impõem uma séria mudança de paradigma. A insurreição ética dos
valores humanos é o único caminho possível para a humanidade verdadeiramente se
distanciar dessa barbárie “suja e encharcada de sangue” e legitimar uma
civilização plena, íntegra, e sustentável.
.....
“Bater
no peito tornou-se mais tarde um gesto de triunfo: o vencedor expressa que sua
vitória é sempre uma vitória sobre a própria natureza”
Esta nota da Dialética do Esclarecimento
remonta a necessidade do homem de sacrificar e renunciar os ímpetos da própria
natureza interior, para astutamente dominar e obter um triunfo maior
posteriormente. Nesse caso, o contexto do comentário remete-se no momento em
que Ulisses percebe que suas próprias servas o traem indo dormir com os odiados
pretendentes que tomaram sua casa, seus bens e praticamente sua mulher.
“Assim como a cadela valente anda em
redor de seus frágeis cachorrinhos e ladra para o desconhecido, instigando-se
para a luta, assim também ladrava o coração em seu peito, enfurecido pela
conduta vergonhosa das servas. Batendo no coração, punia-o com as seguintes
palavras: Aguenta, coração! Mais duras penas suportaste no dia em que o ciclope
monstruoso devorou enfurecido meus bravos amigos. Suportaste sozinho até que,
graças a um estratagema, escapaste da caverna onde antevias uma noite
horrorosa! ‘Assim falou Ulisses, punindo
o coração no peito irado. Logo o coração recobrou a calma e quedou inabalável’
(Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, 1985, Editora Vozes, Excuso
I, nota 5)
Adorno e Horkheimer percebem que no
momento em que Ulisse, segura seus instintos e recobra a calma ele renuncia sua
satisfação pulsional para dominar seus próprios sentidos em favor de um “olhar
posto no futuro”. “O sujeito, ainda dividido e forçado a usar de violência
contra a natureza tanto dentro dele quanto fora dele, "pune" o
coração exortando-o à paciência e negando-lhe com o olhar posto no futuro - o
presente imediato”.
Ulisses controla seu coração que batia
ansioso pela morte das suas servas, justamente para se auto conservar-se. Se o
peito de Ulisses latejava rebelde, a inteligência e o discernimento dispersavam
essa mesma excitação. Isso demonstra o amadurecimento da sua identidade
interna, pois caso ele se entregasse aos prazeres efêmeros de sua sede por
sangue, seria descoberto antes de cumprir seus designíos, que era matar os
pretendentes que cortejavam sua esposa, tomar posse do seu castelo e todos os
seus bens em Ítaca.
Se Ulisses não tivesse utilizado a métis
desde o início de sua viagem para retornar ao lar, provavelmente, como seus
companheiros, teria se perdido no vasto mar das seduções, que tanto o golpearam
para fazê-lo gozar e se entregar a natureza pulsional do ser. Com essa escolha
ele estaria renunciando não só sua esposa, seu filho, seus bens e a triunfal
vingança, como também, e acima de tudo, sacrificaria sua própria vida. Por isso, o herói homérico suporta as duras
penas da Odisséia e freia astutamente seus impulsos para lograr.
'Aguenta, coração! Mais duras penas
suportaste no dia em que o ciclope monstruoso devorou enfurecido meus bravos
amigos. Suportaste sozinho até que, graças a um estratagema, escapaste da
caverna onde antevias uma noite horrorosa!" Assim falou. punindo o coração
no peito irado. Logo o coração recobrou a calma e quedou inabalável. Ele.
porém, continuava a revolver-se para lá e para cá.." (Canto XX. 13/24, A
Odisséia, Homero, 2001).
Freud em seu livro o “Mal-Estar da
Civilização”, reflete justamente como as exigências das nossas pulsões vem
produzindo um mal-estar nos seres humanos. Para ele, o sentimento incontido,
levado ao grau máximo de emoção causa uma agressividade que destrói a
racionalidade da civilização, levando a humanidade a barbárie, ao re-encantamento
destruitivo de si mesmo. Assim de acordo com Freud para o bem da sociedade o
indivíduo precisa ser sacrificado, ele coloca a civilização possa se
desenvolver o homem deve pagar o preço da renúncia da satisfação passional.
Assim Adorno e Horkheimer afirma que o
individuo que ainda não está completamente configurado em sua identidade
interna, tem seus ímpetos, seu ânimo e seu coração excitados independentemente
da vontade dele, e assim são levados pela maré das paixões. Para se firmar como
ser autônomo, e não apenas ser um corpo recheado de natureza e pulsões Adorno
pontua que o sujeito perfura seu próprio coração com as laminas da razão.
Depois que a razão consegue domar o instinto, depois que o coração foi punido
pelo próprio detentor, este novo ser estremece não pela fúria da paixão mas
pela dominação de sua natureza intra-humana.
No livro 1 da ‘República’ de Platão, há
um diálogo entre Céfalo e Sócrates, que aborda justamente esta “paz” interior
que o sujeito sente quando consegue por um fim nas paixões que o dominam. Assim
Sófocles diz: “Quando as paixões cessam de nos repuxar e nos largam, somos
libertos de uma hoste de déspotas furiosos”. Nesse caso especifico, as paixões
foram resfriadas devido à velhice de Sófocles, que em vez de viver preso das
saudades poéticas, se vê liberto das volatidades passionais que governavam seu
ser da juventude a sua maturidade.
Dominado pelos seus próprios déspotas internos,
o homem se transforma em joguete de seus momentos intempestivos. Este, escravo
do seu próprio corpo se vê completamente debilitado de nada saber além do que a
carne e os sentidos lhe proporciona. Nesse sentido, o individuo precisa fazer a
escolha de ceder ao caminho borbulhante das paixões, ou dominar sua natureza
para refrear os instintos e ser tornar soberano das próprias pulsões míticas.
Com isso a razão esclarecedora sobrepuja
e domina o império dos sentidos, tendo assim, o Ser uma suposta aparência de “liberdade”
para agir de forma ajustada aos desígnios dessa razão estética, vazia em
essência que impera em nossa contemporaneidade. O intuito? Chegar a tão idolatrada Ítaca, pouco se
importando com os meios para atingir este triunfal de retornar a esta barbárie
trasvestida de razão.
B.G
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