"Um dia, sem dizer o que a quem, montei a cavalo e saí, a vão, escapado. Arte que eu caçava outra gente, diferente. E marchei duas léguas. O mundo estava vazio. Boi e boi. Boi e boi e campo. Eu tocava seguindo por trilhos de vacas. Atravessei um ribeirão verde, com os umbuzeiros e ingazeiros debruçados – e ali era vau de gado. “Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago...” – foi o que pensei, na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão demotivo; que, quando notei que estava com dorde-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia. O tanto assim, que até um corguinho que defrontei – um riachim à-toa de branquinho – olhou para mim e me disse: – Não... – e eu tive que obedecer a ele. Era para eu não ir mais para diante. O riachinho me tomava a benção. Apeei. O bom da vida é para o cavalo, que vê capim e come. Então, deitei, baixei o chapéu de tapa-cara. Eu vinha tão afogado. Dormi, deitado num pelego. Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Mas eu estava dormindo era para reconfirmar minha sorte. Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo – Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de mim, me vigiava. Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta vida. Tinha notado minha idéia de fugir, tinha me rastreado, me encontrado. Não sorriu, não falou nada. Eu também não falei. O calor do dia abrandava. Naqueles olhos e tanto de Diadorim, o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice, querendo me contar coisas que a idéia da gente não dá para se entender – e acho que é por isso que a gente morre."
Guimarães Rosa - Grande Sertão
Meu coração queima e teima..
Um comentário:
baum demais.. Grande Sertão Veredas é um dos livros mais fabulosos já feito.. Riobaldo um dos personagens mais cultos que a Literatura já produziu e Diadorim o amor mais enigmático!!!!!
a gente não morre, fica encantado
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